Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Venho por este meio pedir o especial favor de me esclarecerem a seguinte dúvida: um indivíduo que segue a igreja evangélica é evangélico ou evangelista?

Muito obrigada.

Resposta:

Usa-se como nome e adjetivo a palavra evangélico, para identificar a pessoa que faz parte de «Igrejas e comunidades religiosas com origem na Reforma (protestante)» (dicionário da Infopédia) ou que é membro da Igreja evangélica (Dicionário Houaiss). O termo evangelista é geralmente aplicado a quem é o autor de um dos Evangelhos (como são S. Mateus, S. Marcos, S. Lucas, e S. João) e a quem canta ou dá a conhecer os Evangelhos.

Pergunta:

Quando se passou a tratar por vós a pessoa respeitável que conheçamos, em vez de usá-lo, esse pronome, a referir a várias pessoas?

E quando surgiram os demais pronomes de tratamento, como Senhor, Vossa Mercê (você/"cê") e tantos outros.?

Os latinos os usavam, tinham os seus próprios ou não possuíam esse tipo de pronome, preferindo apenas os velhos e bons tu e vós àqueles?

Resposta:

Trata-se de um uso muito antigo na língua, à semelhança do que acontece em espanhol e francês.

É uma criação das línguas românicas, pois o latim clássico, que só empregava tu como tratamento de 2.ª pessoa, não a conhecia.

Vale a pena transcrever o que dizem Joan Coromines e José Pascual, no Diccionario Etimológico Castellano e Hispánico (edição eletrónica de 2012), sobre o emprego de vos no castelhano, cuja evolução não diferirá grandemente da que teve vós, o seu cognato em galego-português e, portanto, em português:

«En los SS. XII-XIV conserva el valor de pronombre plural que tenía en latín: "pues vos lo queredes, entremos en la razón" dice el rey a los Infantes de Carrión (Cid, 1893), y análogamente en Berceo ("amigos... / si vos el mi consejo quisiéssedes tomar" Mil., 863b), Conde Luc (ed. Knust, 13.4), etc. Pero también aparece desde los orígenes el uso de vos como pronombre de reverencia con valor singular: "Cid, en el nuestro mal vos non ganades nada" (Cid, 47), "ove por vos tristicia, ahora he placer" dice el rey a su hija (Apol., 545c). Para evitar la ambigüedad, pronto empezó a emplearse vosotros. Inicialmente, éste tendría sólo el valor enfático (‘vosotros sí, no yo’ o ‘no nosotros’) que conserva hasta hoy el fr. vous autres, y que todavía se percibiría tal vez en el S. XIII, en una frase como la siguiente, donde se codea con el plural no enfático vos: «vos todos los mures vos ayuntades contra mi señor, et él es muy sañudo contra todos vos otros» Calila, ed. Allen, 196.289-90.»*

*[tradução livre, mantendo as citações medievais em castelhano: Nos séculos XII-XIV, [vos] conserva o valor de pronome plural que tinha em latim: «pues vos lo queredes, entremos en la razón», diz o rei aos Infantes de Car...

Pergunta:

Gostaria de saber como o nome Abecassis/Abecasis deverá ser lido, isto é, se a tónica reside no segundo a ou no i.

Eu tendo a ler este nome de família como uma palavra grave, já que não há nada em termos de acentuação que indique o contrário. Ainda assim, toda a gente que conheço vem corrigir-me e diz que a tónica é no i.

Qual a forma certa?

Resposta:

O nome em questão é pronunciado de acordo com as convenções de leitura da ortografia portuguesa. Quer isto dizer que Abecassis soa como "abecassís", ou seja, trata-se não de uma palavra grave, mas, sim, de uma palavra aguda (acento tónico na última sílaba).

O apelido Abecassis (também grafado Abecasis) terá sido trazido para Portugal por «uma família de origem israelita, que veio para Portugal no primeiro quartel do séc. XIX, instalando-se nos Açores e no Algarve, nas pessoas de Fortunato e José Abecassis, nascidos em Tânger e Gibraltar» (Enciclopédia Verbo, citada por José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa).

A etimologia deste apelido permanece obscura, tendo  Machado (op. cit.) confessado não possuir explicação para ele: «Corresponderá ao ár[abe] abū-l-qasīs ("o pai do sacerdote")? Alteração de ’abd-al-qāsīs ("o servo do sacerdote")?»

Pergunta:

A minha dúvida gira em torno da expressão «benza-o Deus». Alguns dizem "benzadeus" coloquialmente, outros dizem, tal como encontrei em alguns sites de dúvidas, "benza ó Deus".

A minha pergunta é a seguinte: o que realmente significa esta expressão e qual dessas versões [apresentadas] é a  correta?

Uma outra dúvida é porque nenhuma leva [a] vírgula do vocativo. Por exemplo, "benza, ó Deus" e "benza-o, Deus". O "ó" junto ao vocativo também é correto se fosse preciso?

Resposta:

A expressão escreve-se corretamente1:

(1) «Benza-o Deus.»

A frase tem afinidade semântica com esta outra:

(2) «Oxalá que Deus o benza.»

A forma benza é o conjuntivo (ou subjuntivo, como se diz no Brasil) de benzer.

Na frase, não parece ocorrer, portanto, nenhum vocativo. O o aberto – como em , cujo símbolo fonético é [ɔ] –, que muitos falantes articulam, pelo menos, em Portugal, é o resultado fonético de um encontro vocálico, na ligação entre palavras na frase. Assim, é típico da oralidade a contração em o aberto de um -a átono e de um o, que pode marcar um artigo definido ou um pronome pessoal átono. Por exemplo, a frase «via o pai» soará "viò pai todos os dias" (transcrição fonética: [ˈviɔ paj]; e a sequência "via-o muito" pronuncia-se frequentemente como "viò muito" (transcrição fonética: [ˈviɔ ˈmũj̃tu]). O que aqui se descreve é, no fundo, muito semelhante, se não igual, ao que acontece às contrações de a e para com o artigo definido masculino o: ao («vou ao cinema») soa como "ó" («vou "ó" cinema»); e para o («para o povo») como "pró" («"pró" povo»)2.

A primeira frase em questão ilustrará, portanto, este fenómeno de ligação de palavras:

(3) «"Benzò" Deus.» [neste caso, o o aberto não é a interjeição de vocativo, mas emerge, sim, como foi dito, por causa do encontro...

Pergunta:

Qual é a grafia correta desta cidade do Iémen: "Áden", "Adem" ou "Adém"?

Obrigado.

Resposta:

Escreve-se Adem (palavra grave) ou Adém (palavra aguda, com a aberto e acento tónico na sílaba -em)1.

Também já foi possível escrever este topónimo com acento grave: Àdem era a forma defendida nos meados do século XX por um autor prescritivista como o português Vasco Botelho de Amaral (Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, 1958). No entanto, uma alteração de 1973 aos códigos ortográficos então vigentes – o do Acordo Ortográfico de 1945, em Portugal, e o do Formulário Ortográfico de 1943, no Brasil – levou à supressão deste acento na maioria das palavras2.

1 São estas as grafias registadas por Rebelo Gonçalves no seu Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), obra ainda hoje de referência quanto à fixação de muitos topónimos estrangeiros. Adém é a única forma registada pelo Vocabulário Onomástico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras.