Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

O verbo fazer é impessoal quando se refere ao tempo decorrido. No entanto, ouço as pessoas dizerem «fiz cinco anos no Brasil» ou «fizemos dois meses em Biombo», com o sentido de permanência.

Será que é correto dizer assim, e se não é, como é que se deve dizer?

Resposta:

Os casos apresentados ilustram um uso particular do verbo fazer, talvez limitado a certos falantes de português – da Guiné-Bissau, provavelmente, dado a construção ser assinalada por um consulente que se identifica como natural ou morador neste país.

Pelo contexto, depreende-se que tais de usos de fazer são sinónimos de passar ou ficar:

(1) «Fiz cinco anos no Brasil.» = «Passei/fiquei cinco anos no Brasil.»

(2) »Fizemos dois meses em Biombo.» = «Passámos/ficámos dois meses em Biombo.»

Nas fontes consultadas para a elaboração desta resposta, não foi possível atestar este uso1, nem achar comentário descritivo ao seu respeito2. Mesmo assim, arriscando uma primeira interpretação, dir-se-ia que se desenvolve da construção impessoal «faz... anos»: em vez de se dizer que «faz cinco anos que estou no Brasil» (ou «fez cinco anos que estou no Brasil»), o verbo fazer torna-se pessoal, à semelhança dos verbos passar ou ficar. Esta será um novo alargamento da sintaxe de fazer, que parece desconhecido, por exemplo, em Portugal.

Quanto à correção deste uso, é difícil emitir um juízo normativo, justamente, porque, ao que se sabe, na Guiné-Bissau, continua precário o enraizamento da língua portuguesa entre a maioria da população guineense, que ainda não a fala como idioma materno. Não tendo ainda formado uma norma-padrão nacional, a questão levantada talvez reflita a perspetiva segundo a qual a norma e o padrão de uso na Guiné-Bissau ainda vem do antigo país colonizador, Portugal. Se assim for, dir-se-á que «fiz cinco anos no Brasil», no sentido de «passei cinco anos no Brasil», não constitui uma frase correta, ou ...

Pergunta:

Qual é a pronúncia correta de Hefesto, o nome do antigo deus grego da Tecnologia? "Hefésto", rimando com resto, ou "Hefêsto", rimando com cesto?

Desde já, muito obrigado pela atenção.

Resposta:

O nome Hefesto soa "efésto" ou "ifésto", com e aberto.

Os vocabulários ortográficos existentes que incluem os nomes próprios na sua nomenclatura não associam nenhuma indicação de pronúncia a este nome. No entanto, consultando o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (1940) da Academia das Ciências de Lisboa e o Vocabulário da Língua Portuguesa (1966) de Rebelo Gonçalves, observa-se que os itens com e fechado como cedo são assinalados com indicação de pronúncia; os que têm e aberto não exibem geralmente tal informação, a não quando é necessário distinguir homógrafos com e tónico de diferentes graus de abertura: medo (é), «relativo à Média (região da antiga Pérsia)» vs. medo (ê), «temor». Dado que Hefesto se encontra na segunda das situações descritas, é legítimo inferir que o nome em causa tem e aberto.

Acrescente-se que este nome da mitologia grega está registado no Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (2003), de José Pedro Machado, o qual observa que Hefesto vem «[d]o grego Hēphaistos, filho de Zeus e de Hera, o deus do fogo. Por vezes aparece a variante Hefaistos [...].»

Na mitologia romana, o deus equivalente chama-se

Pergunta:

E, já agora, como se pronuncia o plural de carbono? Será carbonos com a sílaba tónica -bo- com o aberto (ó) ou com o fechado (ô)?

Obrigado pela atenção.

Resposta:

A respeito de carbono, adverte o Dicionário Houaiss que «esta palavra ordinariamente não se emprega no plural». Mesmo assim, importa registar que a pronúncia da forma de singular aparece transcrita com o fechado (o o de avô) em vocabulários ortográficos do segundo terço do século XX (o da ACL, de 1940, e o Vocabulário da Língua Portuguesa, publicado em 1966 por Rebelo Gonçalves).

A pronúncia com o fechado mantém-se no Brasil, como é a regra para qualquer vogal antes de consoante nasal (o n, no caso de carbono); não obstante, em Portugal, observa-se que os dicionários publicados em Portugal mais recentemente (o da ACL, o da Infopédia, o da Priberam) recomendam o o aberto no singular. Daqui se infere que, em Portugal, não invalidando a prolação de carbono com vogal tónica fechada nos dois números, a palavra é geralmente pronunciada com o aberto e mantém este grau de abertura vocálica na forma de plural ("carbónos").

Pergunta:

Estou curiosa para saber as possíveis pronúncias atestadas para a letra y em português europeu (somente).

Portal da Língua Portuguesa traz [transcrição fonética] IPA/AFI [ˈip.si.lõ], com vogal nasal no final da palavra como a pronúncia padrão e não padrão de Lisboa.

Eu e meu amigo estávamos discutindo se essa pronúncia estaria competindo com [ˈip.si.lɔn]. Qual a forma ensinada nas escolas em Portugal? Existe variação (que é o que me interessa realmente)?

Encontrei dois links relevantes:

1) https://youtu.be/-Zvp8jPSSSI?t=94

2) https://youtu.be/Jlhxs_s2oz0?t=84

São materiais portugueses usados para ensinar o ABC para crianças. As pronúncias são divergentes e para mim atestam variação linguística aceitável. Qual é a opinião dos senhores?

Muito obrigada!

Resposta:

Vocabulário Ortográfico do Português (Portal da Língua Portuguesa) apresenta efetivamente a transcrição fonética mencionada na pergunta:

Lisboa (não padrão) ˈip.si.lõ

Lisboa (padrão) ˈip.si.lõ

No entanto, não se confirma que seja esta a pronúncia mais generalizada em Portugal. Com efeito, o dicionário da Infopédia transcreve a palavra com consoante nasal alveolar final, ou seja, com um [n] final articulado: [ipsilɔn]. Existirá, portanto, variação, da qual é bem possível que os falantes nem se deem conta. Esta deve-se ao facto de íman e cólon terem oscilações semelhantes em sílaba final, entre vogal nasal e segmento consonântico nasal alveolar (não se exclui que o núcleo vocálico se nasalize): [ˈimɐn]/[ˈi.mɐ̃n ] (e é possível [ˈi.mɐ̃]); [ˈkɔlɔn]/[kˈɔ.lõ].

Neste contexto, torna-se, portanto, difícil identificar a melhor pronúncia, até porque não parece haver doutrina normativa sobre estes casos. Por outras palavras, as pronúncias mencionadas são todas aceitáveis.

Observe-se, por último, que certos gramáticos prescritivistas aconselhavam as formas "ípsilo" e "ipsílon" (cf. Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa, 1966), mas trata-se de opções que têm uso escasso ou nulo entre falantes de Portugal.

Pergunta:

Consultei vários glossários e dicionários e nenhum, dos que possuo, pôde me auxiliar no entendimento dessa contração marcada pelo apóstrofo («que a'm poder tem») nos versos que se seguem.

Trata-se de uma sinalefa? Se sim, como desenvolvê-la e como construí-la na ordem direta?

«(...) Deus nom mi a mostre, que a 'm poder tem,
se eu querria no mundo viver
por lhe nom querer bem nem a veer.'»

(Rui Pais de Ribela, ''A mia senhor, que mui de coraçom")

Desde já, agradeço a atenção dispensada.

Resposta:

Trata-se de uma sinalefa (transformação de duas sílabas numa)1, em termos genéricos – mais concretamente, é uma contração (crase) do pronome a e a da vogal da preposição em.

O primeiro verso deverá, portanto, entender-se assim:

(i) Deus nom mi a mostre, que a em poder tem = Deus não ma mostre, que a tem em poder

Em (i) há, portanto, uma crase por inversão da construção verbal: «tem em poder» > «em poder tem».

Esta crase de um a como morfema autónomo ou como terminação de palavra tem chamado a atenção dos filólogos, pois ela conta com algumas ocorrências no Cancioneiro da Ajuda, o mais antigo (começos do século XIV) dos manuscritos que atestam o corpus das cantigas medievais. No projeto em linha Universo Cantigas (consultado em 08/11/2019), por exemplo, dedica-se precisamente um comentário sobre este tipo de crase:

«Neste verso aparece a primeira ocorrencia da preposición en [= em] nunha crase coa voz [= vocábulo] anterior (habitualmente coita e dia), tal como se rexistra esporadicamente no corpus; en calquera caso, esta crase ten unha maior presenza no Cancioneiro da Ajuda, que nalgúns casos a presenta fronte a B [Cancioneiro da Biblioteca Nacional, conservado em Lisboa], que mantén a integridade de en [...] ou que, alternativamente, omite a preposición [...].»