Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

No final de uma reunião faz-se a «nota de assentos», ou as «notas de assento»? E qual o seu plural para várias "notas" respeitantes a diferentes reuniões?

Muito obrigado.

Resposta:

A questão apresentada tem menos que ver com correção gramatical (as expressões em apreço estão igualmente corretas) e mais com o conhecimento que temos do mundo (neste caso, administrativo) e a fixação de certos usos. Assim:

1- Tanto pode haver «notas de assento» – são anotações com as quais se faz assento, isto é, registo de alguma ocorrência – como «nota de assentos» – ou seja, como alusão genérica à ação de anotar ou como título do livro, do caderno ou do simples documento (material ou virtual) em que se toma nota dos assentos ou registos feitos a respeito de alguma ocorrência ou decisão.

2- Todas as possibilidades mencionadas estão em uso, como podem revelar muitos documentos disponíveis na Internet (consulta feita pelo Google). No entanto, discernem-se casos em que, tradicionalmente, se impõe uma das formas. Com efeito, atesta-se o uso da expressão «notas de assentos», no plural (cf. n.º 11 da Revista Militar, ano LXXII, 1920, p. 601), ), cujo singular corresponde a «nota de assentos» (idem, ibidem, p. 602), ou seja, trata-se de um tipo de documento – nota – no qual se fazem assentos, isto é, onde se registam dados.

Em suma, o caso apresentado será semelhante ao descrito em 2, e, sendo assim, trata-se de identificar um tipo de documento que se chama nota. Dado que neste documento se escreve não um, mas vários assentos, então, a opção mais adequada terá, no singular, a forma «nota de assentos», que tem o...

Pergunta:

Recebi uma mensagem do meu fornecedor de comunicações a dizer que esgotei o meu plafond de Internet.

Não querendo entrar na discussão sobre a necessidade de usar um estrangeirismo para um conceito que tem vários equivalentes em português, a minha dúvida está em se um plafond se esgota. Sendo um plafond, literalmente, um tecto[1], a meu ver é um nível que se atinge, não um volume que se esgota. Estou certo?

Muito obrigado.

 

[1 O consulente escreve tecto, seguindo a ortografia que esteve plenamente em vigor até 2009 em Portugal. No quadro do Acordo Ortográfico de 1990, escreve-se teto.]

Resposta:

Concorda-se com o raciocínio do consulente, mas também importa observar que o estrangeirismo plafond, «limite máximo»1 – já aportuguesado como plafom2, embora substituível pelo vernáculo teto – tem sofrido uma alteração semântica que leva por confusão – na verdade, por uma operação mental chamada sinédoque –, a denotar a noção de volume («carregamento» ou «depósito») pela palavra que denota o limite de tal volume.

O uso da palavra teto talvez evite esta confusão, porque rapidamente se intui que é mais correto dizer que «se atingiu o teto» do que «se esgotou o teto». Mas com plafom/plafond, o uso generalizado (e, por enquanto, discutível) vai no sentido de conceber a noção associada como capacidade. Por outras palavras, apesar do que é dito pelo consulente, deve assinalar-se que plafom parece já ter sido adaptado ao português com uma semântica própria, pelo que hoje se torna mais difícil classificar a frase «esgotou o seu plafom de Internet» como claro erro ou impropriedade grave.

Mesmo assim, para os mais ciosos da estabilidade semântica e da coerência referencial das palavras, estarão sempre disponíveis a alternativa teto e as construções «atingiu/ultrapassar o teto».

 

1 Cf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.Ver também a Infopédia. Assinale-se que este galicismo não figura nos dicionários brasileiros consultados (Dicionário Houaiss, Dicionário UNESP do Português...

Pergunta:

Porque é que quando estamos a traduzir desporto para inglês, pronunciamos o t em sport, mas quando falamos em Sport Lisboa Benfica ou no modo sport de um carro o t é silencioso?

Resposta:

Sem acesso a fontes que expliquem esse contraste, o mais que se pode aqui dizer é sugerir que, à época em que o Benfica foi fundado – em 1904 –, a influência francesa era muito grande, maior do que a da língua inglesa, hoje dominante.

Tendo em conta que sport também existe em francês, mas pronunciado sem t – a palavra francesa soa "sporr" –, é plausível que a maioria da população tenha seguido esse modelo de pronúncia (recorde-se que há muita gente que diz erradamente "garré", em vez de Garrett). O mesmo terá acontecido a sport, que já se usou como adjetivo, denotando alguma afetação e sem qualquer aportuguesamento (atualmente diz-se geralmente desportivo):

(1) «Muito correcto, um ar sport. Que gente é?» (Eça de Queirós, Os Maias, in Corpus do Português)

Refira-se, entretanto, que sport era forma usada já bem adiantado o século XX, como se comprova pelo comentário que lhe dedicou Vasco Botelho de Amaral (1912-1980), em Grande Dicionário de Subtilezas e Dificuldades do Idioma Português (1958; antém-se a ortografia original):

«Sport, anglicismo vulgaríssimo em bocas e penas de Portugueses. Emende-se: desporto, desporte. E não se es...

Pergunta:

Gostaria de saber se o termo "desumilde" existe, visto vir mencionado na Infopédia da Língua Portuguesa.

Agradeço desde já a melhor atenção.

Resposta:

Geralmente, o registo dicionarístico de uma palavra já é indicativo da sua existência. No caso, o registo de desumilde não só se encontra na Infopédia, mas também no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Poderia pensar-se que estes são dicionários que, por serem eletrónicos e estarem em linha, têm tendência a dar entrada a palavras novas (neologismos), eventualmente de uso discutível.

Consultando um dicionário mais antigo, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa (1991), de José Pedro Machado, observa-se, porém, que também aqui figura desumilde. Mas o uso deste adjetivo será muito mais antigo. Com efeito, ocorre numa atestação de Camilo Castelo Branco (1825-1990), incluída no registo que o Dicionário de Caldas Aulete (consultou-se a versão em linha) faz da palavra:

«desumilde adj. || que não é humilde; em que não há humildade: Acontece o mesmo em toda a parte – contrariou Fernando com certo desabrimento desumilde. ( Camilo, Agulha em Palheiro, c. 2, p. 29. ed. 1865.) F. Des... +humilde

Em suma, desumilde existe, tem uso atestado há, pelo menos, 150 anos e está correto.

Pergunta:

Tenho encontrado alguma validação da forma "Marráquexe". No entanto, esta formulação parece-me tão bizantina que só posso perguntar se faz mesmo sentido. Não será antes "Marraquexe", como se costuma ler?

Obrigado.

Resposta:

Atualmente, a forma Marraquexe, que se aceita como correta, é a mais corrente e impôs-se pela força do uso, pelo menos, a avaliar pela sua sistemática presença em textos de promoção turística. Contudo, tem tradição normativa a grafia com acento, ou seja, o nome de acentuação esdrúxula, Marráquexe.

Com efeito, Marráquexe é a única forma que figura no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, que a Academia das Ciências de Lisboa publicou em 1940. Também é a forma classificada como portuguesa ou aportuguesada por I. Xavier Fernandes, no seu Topónimos e Gentílicos (Porto, Editora Educação Nacional, 1941, p. 66), no qual as grafias Marraquexe e Marraqueche aparecem entre as formas estrangeiras ou mal aportuguesadas. Anos mais tarde, encontra-se novamente Marráquexe, como forma correta em Botelho de Amaral (Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, 1958) e é com só esta grafia que o nome se fixa no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966) de Rebelo Gonçalves.

A forma Marraquexe, que hoje parece dominante e, portanto, se tornou aceitável (pelo menos, no Vocabulário Onomástico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras), deve-se provavelmente a analogia com o francês Marrakech. Mas é irónico constatar que também a forma esdrúxula Marráquexe foi avaliada com reserva e até rejeitada no passado; por exemplo, num artigo de 1922, o arabista português