Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Em português (Portugal) qual o mais correto: Isaac ou Isaque?

Resposta:

A forma correta e tradicional é Isaac, que tem uma variante também aceitável, Isac.

Isaque, embora tenha configuração portuguesa, levando a crer que até poderia ser preferível, é uma outra variante aceitável, mas que não parece ter tradição de uso significativa. Contudo, encontra-se em Portugal, fazendo até parte da atual lista de nomes admitidos pelo Instituto dos Registos e do Notariado.

Pergunta:

Dada a existência de diversas explicações etimológicas para a palavra estratégia, venho solicitar os vossos possíveis esclarecimentos.

Antecipadamente grato pela ajuda.

Resposta:

A etimologia de estratégia, que significa genericamente «ciência das operações militares»1, encontra-se consignada, por exemplo, no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001)

«stratēgía, as "o cargo do comandante de uma armada, o cargo ou a dignidade de uma espécie de ministro da guerra na antiga Atenas, pretor, em Roma; manobra ou artifício militar", pelo francês stratégie (1812, stratège [...]); a prosódia atual sofre influência das palavras abstratas em -ia, como em latim [exemplos: eficácia, pertinácia].»

Outras fontes consultadas não contrariam esta informação. É certo que José Pedro Machado, no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (Lisboa, Livros Horizonte, 1987), não menciona a via de transmissão francesa, mas esta é plausível, tendo em conta que os primeiros registos de estratégia – segundo Antônio Geraldo da Cunha2, da primeira metade do século XIX – datam de uma época em que o francês atuou frequentemente como medianeiro na adoção de numerosas palavras cultas quer de origem latina quer de origem grega.

Acrescente-se que, para o espanhol estrategia, também se aceita a origem grega, mas por via indireta, pelo latim e pelo francês:

«Estrategia [Acad. ya 1843], tomado del gr. στρατηγíα ‘generalato’, ‘aptitudes de general’, otro derivado de στρατηγóς; este último se tomó primero por conducto del fr. stratègue [1737; hoy más bien stratège], dándole la forma errónea estratega [Terr.], y en el sentido etimológico de ‘general griego’; después se le ha atribuido, por influjo de estr...

Pergunta:

Diz-se «abrir fogo contra» ou «abrir fogo sobre»?

Obrigado.

 

Resposta:

A expressão «abrir fogo», interpretável nas aceções de «disparar (arma)» e «começar um ataque»1, é compatível com ambas as preposições, contra e sobre, como se atesta quer por uso literário quer por registo dicionarístico:

(1) «A Voz, porém, abriu fogo contra Rodrigo Esteves: acusou-o das maiores torpezas enquanto empregado dos Amorins.» (João Gaspar Simões, Pântano, 1936)

(2) «[A] políca abriu fogo sobre os manifestantes [...].» (Énio Ramalho, Dicionário Estrutural, Estilistico e Sintáctico, Livraria Chardon de Lello e Irmão Editores, 1985)

 

1 Cf. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, e o dicionário de língua portuguesa da Infopédia, da Porto Editora (consultado em 6/10/2019).

 

Pergunta:

A palavra "bolsominion" necessita de acento gráfico? É uma palavra paroxítona?

Resposta:

Em português, a grafia correta é bolsomínion.

A palavra em causa é analisável como uma amálgama construída pela truncação bolso-, do nome próprio Bolsonaro (apelido ou sobrenome do atual presidente do Brasil), e do termo inglês minion, «servo, lacaio»1. É muito provável que o emprego deste anglicismo decorra do facto de na última década se ter tornado mais conhecido como nome próprio no plural – Minions –, pelo qual se identifica a personagem coletiva de uma famosa série de filmes de animação2. É uma denominação pejorativa, de intenções críticas e sarcásticas, que, no Brasil, se aplica aos adeptos de Jair Bolsonaro

Como nome próprio, que junta elementos de origem não portuguesa, pode não ficar sujeito às regras ortográficas e dispensa acento gráfico: Bolsominion.

No entanto, se se pretende usar a mesma forma como nome comum, deve atender-se a que o inglês minion tem acento tónico na primeira sílaba (soa como "mínion"). Sendo assim, a forma correta é bolsomínion, com acento na -mí-, sendo esta tratada como palavra paroxítona (ou palavra grave, como se diz em Portugal), sobretudo pela razão de o encontro vocálico átono final -io- se comportar como um ditongo crescente3 (cf. o caso de domínio, em que as duas vogais -i-

Pergunta:

Os dicionários registam esparguete, termo mais usual em Portugal, e espaguete, considerado mais correto no Brasil.

Sendo a origem desta palavra o vocábulo italiano spaghetti (plural de spaghetto, diminutivo de spago – cordel), qual será a razão da epêntese do r em esparguete?

Na 3.ª edição (1977) do Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de José Pedro Machado, lê-se:

Espaguete – do italiano spaghetti «macarrão fino». Há a variante esparguete, devida à influência de espargo.

E no Dicionário da Língua Portuguesa (2008) da Porto Editora encontramos, quanto à etimologia, o seguinte: do italiano spaghetti x espargo.

«E o que têm os espargos [a] que ver com esparguete, para além de haver uma óbvia semelhança na forma desses dois vocábulos?» pergunta-se aqui [Sara Leite, "Cordelinhos à Portuguesa", in blogue Língua à Portuguesa, 3/11/2008]:

«[a] A palavra “espargo” vem do grego asparagos, “espargo”, pelo latim asparagu- (Infopédia).

Será que o verbo latino spargo (espalhar) também poderá ter tido influência em esparguete?...

Fico muito grato pela vossa atenção.

Resposta:

Sobre a etimologia da forma esparguete, usada em Portugal, aceita-se e é plausível a explicação dada por J. P. Machado. Ou seja, no aportuguesamento de spaghetti, operado na variedade lusa, a inserção da consoante r (a epêntese) deve-se à analogia com espargo, palavra que exibe tal consoante na posição medial.

Quanto à possibilidade de uma influência do latim spargo – do qual evoluiu espargir –, parece ela pouco provável, porque, para se verificar, teria de se ter feito sentir num meio erudito. Ora, a forma esparguete antes se afigura uma criação popular, alterada por aproximação a espargo, num processo enquadrável na etimologia popular1.

Por contraste, a forma brasileira é mais conservadora, por não fazer a referida epêntese. Poderá pensar-se que a fortíssima presença italiana no Brasil para tanto terá contribuído1, mas falta informação que possa confirmar esta conjetura.

 

1 A etimologia popular consiste na alteração da forma de uma palavra de modo a aproximá-la de outra, por se supor que existe entre elas uma relação semântica ou derivacional. É o fenómeno que ocorreu na evolução da palavra floresta, na Idade Média foresta, na qual se inseriu por analogia um l não etimológico, no pressuposto erróneo de haver uma relação com flor. Cf. "Floresta e a família de palavras flor".

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