Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

"Participativo".

1. A palavra existe na Língua Portuguesa?

2. Será um neologismo? Quando passou a fazer parte do vocabulário da Língua?

Só a conheci, por volta dos anos 80, como calinada dos professores do Ensino Básico (mesmo os de Língua Portuguesa) que a empregavam ao avaliar a participação dos seus alunos nas actividades lectivas.

Deparei-me ultimamente com a expressão «orçamento participativo». Se a palavra "participativo" é o adjectivo que os professores usavam na avaliação dos alunos, pergunto: o orçamento participa em quê?

Obrigado.

 

[O consulente escreve conforme a norma anterior ao Acordo Ortográfico atualmente em vigor]

Resposta:

O adjetivo participativo existe, quer porque é usado há já algum tempo, quer porque está dicionarizado, quer ainda porque se forma de acordo com as regras da morfologia da língua portuguesa e é, portanto, legítimo. Mas pode levantar-se a questão de saber se a palavra tem usos que configuram uma situação de impropriedade vocabular, como o consulente parece considerar.

No entanto, os dados históricos e interpretativos não confirmam tal perspetiva: é verdade que participativo não consta do Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), de Rebelo Gonçalves, mas fontes lexicográficas mais tardias já o consignam – é o caso do Vocabulário Ortográfico (2001), de José Pedro Machado. Por outro lado, a definição de participativo, mesmo considerada composicionalmente, isto é, pela soma dos seus constituintes (o tema verbal participa- e o sufixo -tivo), não é incompatível com os usos descritos na questão enviada: «1 que se refere a participação; 2 que se caracteriza por ou propicia a participação Ex.: movimento participativo» (Dicionário Houaiss).

Sendo assim, respondendo diretamente à pergunta, embora já tenha sido um neologismo, participativo constitui hoje uma palavra que se enraizou no uso, sem que se conheça nenhuma restrição de caráter normativo. Poderá objetar-se que os adjetivos sufixados por -tivo e -ivo são causativos, o que se confirma pela interpretação de casos como desenjoativo («que faz desenjoar») ou vomitivo («que faz vomitar»)1. Quanto à expressão «orçamento participativo», também não se vislumbra erro, visto que o sufixo -tivo pode marcar genericamente a noção de «relativo à participação».

 

...

Pergunta:

Gostaria de saber se a expressão «já se fazem horas» está correta segundo o padrão da norma culta da língua portuguesa.

Um exemplo de uso seria: «Vamos embora, pois já se fazem horas.»

Resposta:

 A frase está correta, e há exemplos literários desta construção, quer do Brasil, quer de Portugal:

(1) «Entretanto, faziam-se horas. Os examinadores estavam já reunidos na sala de exames [...].» (Aluísio Azevedo, Casa de Pensão, 1884)

(2) «Estão a fazer-se horas do seu jantar, Magalhães.» (Carlos Oliveira, Uma Abelha na Chuva, 1953)

Poderia julgar-se que, neste caso, o verbo fica no singular, como acontece com a construção «já faz oito horas que ela desapareceu» (cf. Dicionário Houaiss, s.v. fazer), a qual é equivalente a «já há oito horas que ela desapareceu», para expressar o tempo decorrido. Não sendo impossível dizer-se ou escrever-se «já se faz horas», com o verbo no singular, como em «já se faz tarde», acontece, porém, que com a expressão das horas se notam certas peculiaridades de uso que se tornaram norma pela força do uso. Com efeito, na construção em apreço, o verbo concorda com «horas», no plural, à semelhança do verbo dar, cuja aplicação a horas se faz intransitivamente, de maneira menos habitual, segundo Evanildo Bechara, na sua Moderna Gramática da Língua Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2003, p. 563):

«Se aparece o sujeito relógio, com ele concorda o verbo da oração: "O relógio deu duas horas." Não havendo o sujeito relógio, o verbo concorda com o sujeito...

Pergunta:

Qual a forma correcta de se dizer:

«Garfo de peixe», ou «garfo a peixe»?

«Garfo de carne», ou «garfo a carne»?

Obrigado.

Resposta:

Em português as formas usadas para referir a finalidade de cada talher apresentam sempre a preposição de: as formas corretas são, portanto, «garfo de peixe/carne», tal como se emprega «colher de sopa/sobremesa». É também possível a preposição para – «garfo para peixe/carne» –, mas trata-se de um uso menos consolidado e, portanto, menos corrente, para vincar a finalidade do talher em referência.

Note-se que se atesta o uso de «garfo a peixe/carne» em páginas da Internet, mas trata-se com toda a probabilidade de um galicismo que não se justifica. Com efeito, a ocorrência da preposição a parece dever-se à influência do francês, língua em que a preposição à exprime muitas vezes relação e finalidade; daí que «garfo a peixe/carne» evoquem facilmente «fourchette à poisson», ou seja, «garfo de peixe».

Pergunta:

Face a divergentes opiniões, e após ter consultado o Dicionário de Língua Portuguesa da Academia, gostaria que me elucidassem sobre o processo de formação da palavra desunhar, que, segundo aprendi, é prefixo des + unha + sufixo ar, tal como está no referido dicionário.

Será, então, uma palavra derivada por prefixação e por sufixação, ou tem outra classificação?

Agradeço antecipadamente a vossa disponibilidade e as vossa lições.

Resposta:

O verbo desunhar correntemente usado com pronome reflexo, desunhar-se1 («fazer grande esforço para executar um tarefa difícil») – deriva por sufixação de unhar.

Note-se, porém, que, em Portugal, o verbo unhar parece usar-se pouco, o que pode sugerir que desunhar é formado por parassíntese, isto é, que são simultâneas a prefixação de des- e a sufixação de -ar. Não é de facto o que acontece, porque se trata de um verbo derivado por prefixação. De qualquer forma, importa sublinhar que, no contexto do estudo da gramática em Portugal, nos ensinos básico e secundário, trata-se de um caso de análise menos consensual, que só muito pontualmente será explorado.

 

1 Ao verbo desunhar associam-se várias aceções: «arrancar as unhas», «fazer rachar os cascos dos equídeos devido a percorrerem longas distâncias», «desprender do fundo a unha de uma âncora» (ver dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). Conjugado pronominalmente, desunhar-se pode significar «empenhar-se por atingir um objetivo», «trabalhar com rapidez», «agir sofregamente» e «fugir» (cf. idem, ibidem; ver também o Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Gostaria de saber qual o significado da expressão ena no português de Portugal.

Resposta:

Transcrevemos a definição da Infopédia, que é adequada: «ena [...] interjeição [que] exprime alegria, surpresa ou admiração». O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa considera-a próxima das interjeições ui! e eia!; com esta última também a identifica o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (ACL), que menciona, além disso, caramba como outra interjeição sinónima. São exemplos do uso de ena as seguintes frases:

(1) «Ena, que maravilha!»

(2) «Ena, então por cá?»

(3) «Ena, tanta gente!»

No Corpus do Português, de Mark Davies, há algumas ocorrências desta interjeição, todas de textos em português de Portugal, como é o caso da que a seguir se apresenta, marcando admiração ou surpresa:

(4) «Vai ele abre a caixa. Ena tanto bicho! Cobras e um lagarto, só visto...» (Irene Lisboa, O Pouco e o Muito: Crónica Urbana, 1956)

A interjeição também surge associada a e a pai:, sendo esta não propriamente a palavra pai, mas antes uma variante da expressão , que se costuma considerar como uma forma curta de rapaz, com função vocativa:

(5) «Ena pá! O que tu fizeste!» (dicionário da ACL, s.v. ena)

(6) «Viveu ali um rei mouro, que deixou [...] um monte de oiro, e noutra um tesouro de diamant...