Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Durante a tradução dum texto deparei-me com a frase «enquanto crianças, não tivemos opção.» e fiquei na dúvida se o correcto não seria mais «Em crianças, não tivemos opção».No entanto, esta segunda não me soa tão bem como a primeira.

Alterar para «Enquanto éramos crianças (...)», parece-me um pouco rebuscado. Podem esclarecer, por favor?

Um grande obrigado pelo vosso excelente trabalho!

Resposta:

É uma construção possível e correta – uma elipse de «enquanto fomos/éramos crianças» –, embora a que tenha mais tradição seja efetivamente «em criança»/«em crianças».

Enquanto é geralmente uma conjunção subordinativa temporal («enquanto estive no campo, a minha mãe tratou-me das crianças», dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). É também corrente a introduzir uma contraposição: «Ela leva uma vida regalada, enquanto eu me farto de trabalhar», idem, ibidem).

Contudo, enquanto ocorre também antes de substantivo, para marcar «[uma perspetiva limitadora sob a qual se encara alguém ou alguma coisa»: «ele, enquanto escritor, não tem grande mérito»; cf. idem, ibidem)1. O caso de «enquanto crianças» corresponderá a este segundo caso, muito embora mantenha o valor temporal associado ao uso oracional da conjunção, podendo a expressão ser até parafraseada por uma oração – «enquanto [fomos/éramos] crianças» –, o que permite sugerir que a estrutura mais sintética constitui uma elipse.

Seja como for, trata-se de uma construção que encontra exemplos literários:

(1) «Lembrava-se do seu isolamento, enquanto criança» [Abel Botelho (1854-1917), Fatal Dilema, 1917 in Corpus do Português, de Mark Davies].

Quanto a «em criança», é outra construção de valor temporal, que também acha abonação literária:

(2) «Caramba! Esses analfabetos, esses mastigadores de lugares-comuns, esses tomadores de chá requentado e que lhes sabe a coisa fina, de não saberem o que seja chá, de em crianças nunca o cheirarem?» [Tomaz de Figueiredo (1902-1970), Noite das Oliveira...

Pergunta:

Muitos a pronunciam "Erliquia", mas entendo que o nome científico provém do cientista que a descreveu, Paul Erlich (1854-1915), e, portanto, deveria ser pronunciado como "Erlichia".

Procede o meu entendimento?

Obrigado.

Resposta:

Por Ehrlichia canis entende-se o agente causador da vulgarmente chamada «febre da carraça».

Não é forçoso que o nome científico Ehrlichia canis ("Ehrlichia" derivada do apelido de Paul Ehrlich) seja pronunciado "erlíquia" – é possível pronunciar "erlíchia".

Note-se, entretanto, que o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras regista ehrlichiose como palavra derivada, embora em textos especializados ocorra igualmente erliquiose, forma que confirma a possibilidade da pronúncia "erlíquia".

Recorde-se também que os derivados de nomes estrangeiros mantêm geralmente as sequências gráficas do nome original, mesmo que estas não façam parte da tradição ortográfica do português. Com efeito, tal como se mantém o w de Wagner em wagneriano, assim ehrlichiose conserva igualmente a grafia do nome do cientista alemão, Ehrlich.

Pergunta:

Sou estudante de Línguas, Literaturas e Culturas e, numa disciplina da área da linguística, surgiu a questão de como é que se poderá explicar diacronicamente a possibilidade da mesóclise.

Assim, qual é a história da mesóclise, desde o latim clássico até ao português contemporâneo?

Resposta:

A história da mesóclise1 está ligada à história da formação do futuro simples do indicativo em português. Este tempo verbal tem origem numa perífrase verbal do latim vulgar. Por exemplo, amarei representa o resultado de amare habeo.

Acontece que a forma em apreço manteve até determinada época a autonomia dos seus elementos constituintes, a ponto de entre estes poder inserir-se um pronome pessoal complemento: assim, de amare illum habeo, a evolução para o galego-português foi no sentido de possibilitar formas como amá-lo-ei, que historicamente é equivalente a «hei de amá-lo», mas de acordo com uma ordem sintática diferente.

 

1 A mesóclise consiste na «colocação do pronome oblíquo átono [_pronome pessoal átono] entre o radical e a desinência das formas verbais do futuro do presente e do futuro do pretérito (p.ex.: vê-lo-ei, contar-me-ás)» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).

[N. E. (20/03/2020) – Acrescente-se as considerações do linguista galego Manuel Ferreiro, na sua Gramática Histórica Galega (Edicións Laiovento, 1996, p. 298): «No galego-português medieval, a natureza analítica deste tempo (e mais do Pospretérito) estaba plenamente vixente, sendo posíbel a separación da forma de infinitivo da desinencia por meio dun pronome persoal (tmese: amá-lo-ei, amar-vos-ei, etc. , a carón de amarei-o, amarei-vos, etc. Esta construcción desapareceu en galego moderno, manténdose ainda no portugués literario.» O termo Pospretéritoé equivalente aos termos condicional (usado em Portugal) e futuro do pretérito (Brasi...

Pergunta:

Qual o correto?

«Hoje é domingo, pé de cachimbo«, ou «Hoje é domingo, pede cachimbo»?

Resposta:

Não é fácil classificar como correta ou incorreta uma parlenda (ou lengalenga) tradicional – brasileira ou de outro lugar. O mesmo se diga acerca dos versos que a constituem.

A forma mais antiga ou mais enraizada parece ser «hoje é domingo, pé de cachimbo». Contudo, há variantes como «pede cachimbo», alternativa esta que será uma forma de racionalizar um verso provavelmente absurdo na origem, talvez mais decorrente das necessidades da rima (cf. Cibelle Correa Béliche Alves et al., "Língua e cultura do Maranhão: tico tico sirilico... o que é, o que é – parlendas e adivinhas maranhenses das obras de Domingos Vieira Filho", in Anais do II Congresso Nacional de Literatura - II CONALI, 2014, pp. 391-404).

Trancreve-se a seguir uma das versões desta parlenda (sobretudo) brasileira: «Amanhã é domingo,/ Pé de cachimbo;/ A areia fina/ Deu no sino,/ O sino é de ouro,/ Deu na torre,/ A torre é de prata/Deu na mata;/A mata é valente,/ Deu no tenente,/ O tenente é mofino,/ Deu no menino;/ O menino é tolo/ Deu um tapa-olho.» (idem, p. 396)

Pergunta:

Tenho em mãos um texto em inglês para traduzir onde aparecem uma lista de termos como «racism, sexism, classism, ageism...»

Como devo traduzir classism? Será correto utilizar hoje em dia o termo "classismo", ou devo empregar «discriminação de classes»?

Já existe na língua portuguesa o termo "classismo"? O dicionário Priberam diz que sim, mas gostava de saber a vossa opinião.

Grata.

Resposta:

Nada impede a formação e o uso de classismo,  que, além de constituir sinónimo (muito pouco frequente) de classicismo1, é corrente como quase sinónimo de elitismo.

Dado os dicionários registarem classista, nome e adjetivo que, entre outras aceções, pode significar «(pessoa) que venera ou defende determinadas classes, em especial as classes favorecidas» e «(pessoa) que defende as diferenças de classe» (dicionário da Academias das Ciências de Lisboa), é legítimo supor um nome correspondente, classismo, tal como elitista pressupõe elitismo.

Note-se que não é apenas o dicionário Priberam que regista os vocábulos classista e classismo; também o dicionário da Porto Editora, na Infopédia, os acolhe.

Finalmente, registe-se a tradução dos outros termos ingleses enumerados pela consulente: racismo, sexismo, idadismo.

1 Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

Cf.