Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na gramática de Fernando Pestana (2019), ele diz que locuções adjetivas (à bela, à lenha, etc.), adverbiais (às pressas, à vista, etc.), conjuntivas (à medida que/à proporção que) e prepositivas (à custa de, à moda de, etc.) levam crase «porque a preposição a que inicia tais locuções se funde com o artigo a que vem antes do núcleo feminino. O acento grave é fixo» (p .785). Assim ensinam muitos gramáticos (Nicola/terra,etc).

Entretanto Manoel P. Ribeiro, na sua gramática, 2011, pág. 307, diz: «A tradição gramatical assinala com acento grave certas locuções (adverbiais,prepositivas e conjuncionais ,adjetivas) em que verdadeiramente não ocorre crase. O acento grave é empregado para diferenciar a preposição a do artigo a.»

[Evanido] Bechara em sua gramática, 2009, diz que o acento grave tem duas funções e uma delas é «representar a pura preposição a que rege um substantivo feminino singular, formando uma locução adverbial» (pág.308).

Então há crase (fusão artigo+preposição ) ou só acento grave assinalando a preposição nas locuções adverbiais, prepositivas , conjuncionais e adjetivas? Qual das duas visões é a correta ?

Grato pela ajuda.

Resposta:

Muito se agradece a chamada atenção do consulente, que dá uma pista muito interessante para a história da ortografia da língua portuguesa. Trata-se, com efeito, de uma interpretação que parece apenas válida no Brasil.

O que diz Fernando Pestana decorre do que se lê nas normas ortográficas vigentes no Brasil e em Portugal nos últimos 75 anos. Por exemplo, no Formulário Ortográfico de 1943, que vigorou no Brasil até 2009, lia-se que (XII, 43):

«16ª – O acento grave assinala as contrações da preposição a com o artigo a e com os adjetivos ou pronomes demonstrativos a, aquele, aqueloutro, aquilo, os quais se escreverão assim: á, às, àquele, àquela, àqueles, àquelas, àquilo, àqueloutro, àqueloutra, àqueloutros, àqueloutras.»

No Brasil, a norma ortográfica de 1943 só previa, portanto,  o acento grave nas contrações da preposição a com o artigo definido a. O Acordo Ortográfico de 1945 e o atual Acordo Ortográfico de 1990, que é hoje comum ao Brasil e Portugal, não se afastam deste preceito, o qual fará supor, por exemplo, a locução «à vista» se escreve assim porque o à constitui uma contração. Em Portugal, assim se julga, até porque é o que sugere a sua pronúncia como "a" aberto, claramente contrastada com a pronúncia da preposição a e do artigo definido, que, isoladamente, soam com "a" fechado.

Contudo, tem fundamento histórico e justifica-se a visão de Manoel P. Ribeiro e de Evanildo Bechara, a qual ...

Pergunta:

Dada a profusão de sites que se referem a essas pequenas plantas de belas flores coloridas mas de cheiro pouco agradável como cravos túnicos, suponho que sou eu que estou errada.

Sempre os conheci como cravos púnicos, ou seja, «cravos fenícios». No entanto, sendo púnico um termo tão pouco conhecido da maioria dos falantes desta língua, sempre assumi que a troca se devesse a uma maior sensação de familiaridade com a palavra "túnico", provavelmente derivada de túnica.

Estou errada? Será que os meus cravos nunca foram realmente fenícios e foram buscar o nome a uma peça de roupa?

Resposta:

É difícil ser perentório quanto à forma correta do nome em questão.

É possível que túnico esteja em lugar de púnico, mas são tantos os nomes dados à planta, que surgem dificuldades até para saber de que planta se trata realmente – pelo menos, pode ser quer a Tagetes patula1 quer a Tagetes erecta. Além disso, tem vários nomes em português2, havendo variação regional.

Apesar de tudo, uma consulta de páginas da Internet revela que cravo-túnico é a forma corrente. Pode tratar-se de facto de uma analogia com túnica, talvez mais presente no espírito do falante médio. No entanto, também se encontra a denominação cravo-de-tunes, que tanto pode ter motivado um gentílico deturpado ("túnico", em vez dos corretos tunesino ou tunisino)2, como corresponder a uma nova interpretação com base na anterior troca de púnico por "túnico".*

Registe-se, mesmo assim, uma frase retirada de um texto de João Bénard da Costa atesta o uso de cravo-púnico (manteve-se a grafia original):

(1) «O tema de Lark, vestida de arminho ou de prata, trazendo na mão um cravo púnico ou uma rosa da Pérsia.» ("As almas do outro mundo" 05/09/2003, in Público)1

Contudo, no mesmo jornal em que se encontra cravo-púnico, acha-se um artigo publicado anos mais tarde, a abordar o tema das flores comestíveis, no qual se escreve cravo-tunico, identificando com a ...

Pergunta:

Cada vez mais oiço na rádio e na televisão as mais diversas pessoas – jornalistas, comentadores, políticos, até médicos – dizerem "circuíto", "intuíto" e "fortuíto". Pelo andar da carrruagem, o muito vai passar a "muíto" – sabido, como se sabe, como é o rolo compressor da televisão na propagação do erro!...

Pergunto: a que se deve esta onda arrasadora da prolação tradicional do ditongo ui?

Muito obrigado.

Resposta:

As palavras circuito, intuito e fortuito, a que se junta gratuito, têm todas ditongo decrescente ui, ou seja, têm o mesmo ditongo que se produz e ouve no nome próprio Rui ou no nome comum cuidado.

A pronúncia criticada e criticável consiste em articular o referido par vocálico como ditongo crescente1, como se ouve nos casos de ruído, aluimento ou possuir.

Por que razão ocorre esta alteração? Talvez haja alguma interferência (por analogia) da terminação -ito, forma que ocorre como sufixo de diferentes origens e a marcar diferentes valores, em que o i é núcleo de silaba tónica: conflito, meteorito, arenito. Mencione-se também um caso semelhante, o do nome comum e adjetivo fluido (com ditongo decrescente, como em fui), frequentemente confundido com o particípio passado fluído, do verbo fluir (com ditongo crescente, como em suíno): também dando prioridade  a "uí", não raro se ouve «os "fluídos"» em lugar de «os fluidos».

Em todo o caso, não se julgue que a pronúncia em causa constitui novidade no mundo de língua portuguesa. Há dela registo no Brasil, desde há algumas décadas, como atesta um comentário que Napoleão Mendes de Almeida (1911-1998) dedicou a circuito no Dicionário de Questões Vernáculas (São Paulo, Livraria Ciência e Tecnologia, 1994, 2.ª edição rev...

Pergunta:

Usa-se a expressão «atento o parecer», quando alguém se pretende referir a um parecer que é ponderado ou tomado em consideração no sustento de uma decisão.

Em que género fica o verbo atentar quando o substantivo é feminino? Por exemplo, com informação, ficaria «atento a informação» ou «atenta a informação»?

Resposta:

Tendo em conta que atento significa «levado em consideração; visto, ponderado» (cf. Dicionário Houaiss) e é usado adjetivalmente, deve fazer-se a concordância em género: «atenta a informação».

A fórmula em questão tem a configuração de uma construção participial, comportando-se atento como o particípio passado atendido. Na verdade, seria até de esperar que a fórmula integrasse esta última forma: «Atendido o parecer», «atendida a informação». Contudo, a presença de atento neste caso deve-se ao facto de o verbo atender já ter tido (ou ainda ter) duplo particípio passado: por um lado, a forma regular atendido, e, por outro, a forma irregular atento. Esta possibilidade era mencionada por Vasco Botelho de Amaral, no seu Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1958); contudo, atualmente, atento já não figura como forma da conjugação de atender, pelo menos, a avaliar pela sua ausência de dicionários em linha (cf. Dicionário Infopédia e Dicionário Priberam).

Falando ainda de fórmulas, registe-se a inclusão de atento como adjetivo na sequência «atento, venerador e obrigado», a qual já foi muito mais frequente no fecho de cartas (cf. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa).<...

<i>Hostel</i> e o seu plural
Sobre o aportuguesamento de um anglicismo

Durante a crise pandémica da primavera de  2020 em Portugal, o anglicismo hostel foi palavra recorrente na comunicação social por causa da deteção de infetados entre as pessoas confinadas em alguns alojamentos desse tipo. Como faz o aportuguesamento desta palavra? O apontamento a seguir apresentado procura avaliar a sua adaptação ao português, deixando recomendações sobre o seu uso.