Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de perguntar se a palavra geniturinário se escreve como acabo de o fazer, ou genito-urinário.

Pergunto porque julgava que, segundo as regras do hífen na composição, esta palavra se deveria escrever sem hífen (já que me parece que o elemento genito não conserva a sua integridade e, portanto, não sendo "geniturinário" uma palavra composta por justaposição, não deveria escrever-se com hífen).

No entanto, vejo que a Sociedade Portuguesa de Urologia escreve a palavra com hífen.

Agradeço desde já a atenção e a incrível ajuda que sempre representam.

Resposta:

Os termos da linguagem médica levantam problemas que a codificação ortográfica nem sempre consegue resolver. Será este um caso.

Muitos termos são compostos morfológicos, isto é, formados por radicais geralmente de origem grega, e escrevem-se habitualmente sem hífen, constituindo uma única palavra gráfica. A palavra em questão tem a forma geniturinário há já bastante tempo (pelo menos, desde 1940, no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa), uma grafia que o acordo ortográfico vigente não abrange nem altera.

Quanto a genito-urinário não é uma forma impossível, porque representa a coordenação de dois adjetivos: genital e urinário. Contudo, também são antigos outros termos em que genito- aparece agregado ao elemento seguinte, sem hífen – genitocrural, genitofemoral –, e sendo assim, parece não haver razão para rejeitar geniturinário nem para favorecer genito-urinário.

Pergunta:

Não encontro no dicionário uma definição para a palavra "subtrama".

Penso que poderá ser qualquer coisa como «uma trama dentro da trama», isto é, «um enredo dentro do enredo», «um episódio dentro da história». Mas sendo esse o sentido, a pergunta é: existe essa palavra?

Obrigado.

Resposta:

As fontes dicionarísticas consultadas1 não registam a palavra subtrama, mas esta está bem formada e, portanto, correta, à semelhança de outras prefixadas do mesmo modo2, que estão já dicionarizadas: subcontrato, subsecretário, subtema, subtratamento, subunidade, subzona.

Da sua formação, e independentemente da dupla significação da palavra («espécie de teia» e «enredo»), infere-se que significa «parte da trama» ou «trama que se desenvolve dentro de uma trama mais alargada». Da consulta de páginas de Internet, nota-se que subtrama ainda não é muito frequente nem tem uso estável nos textos em português, mas ocorre de maneira mais corrente em espanhol (ou castelhano, como se preferir). 

1 Cf. Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa (Porto Editora), Dicionário Priberam da ...

Pergunta:

Certa vez, Napoleão Mendes de Almeida, creio eu que no seu Dicionário de Questões Vernáculas, disse, do seu jeito prescritivista, que deveríamos ter bem clara a distinção entre «tenho que» e «tenho de». Segundo ele, frases como «ela afirmou que eu tinha que tomar mais cuidado» seriam mais bem formadas com o uso de «tenho de», ou seja, de forma correta escreveríamos e diríamos: «ela afirmou que eu tinha de tomar mais cuidado».

«Ter que» seria usado no sentido aqui discutido: «tenho mais que fazer».

Contudo, é fato que no Brasil quase todos dizem «tenho que fazer X» e, no caso de «tenho mais que fazer», — é o que me parece — dizem «tenho mais o que fazer».

No primeiro caso, acabamos, por coincidência ou não, convergindo no uso com o espanhol, idioma em que se diz «tengo que».

No entanto, no segundo, acabamos por criar algo próprio, ou seja, em vez de manter o «tenho mais que fazer», pusemos um o antes do que. (“Criando” porque me parece mais natural que a novidade seja nossa, já que em tanto no português europeu quanto no espanhol há a mesma forma, e a divergente é a construção brasileira.)

A pergunta é: como é que houve essa inovação no Brasil? Conseguem dar hipóteses? Terá sido uma questão fonética?

Resposta:

Sobre a história dos juízos normativos à volta de «ter que», com valor modal, poderá consultar a resposta "Ter de vs. ter que".

Quanto a «ter mais o que fazer», que tradicionalmente não é aceite1, as fontes consultadas para elaboração desta resposta são omissas quanto à sua origem2.

No entanto, não é de excluir que a génese da construção em apreço se deva à analogia com orações interrogativas indiretas em que o pronome interrogativo que pode ser substituído por o que:

(1) Não sei mais que fazer.

(2) Não sei mais o que fazer.

Em (2), observa-se que é possível ocorrer o que ocorra em lugar de que interrogativo.

Sugere-se aqui, portanto, que «ter mais o que fazer», em vez de «ter mais que fazer», seja resultado da transposição da relação entre (1) e (2), levando a permutar que com «o que». Na origem da construção brasileira, estarão, portanto, factores de interpretação sintática e semântica.

 

1 Maria Helena de Moura Neves, no Guia de Uso do Português (São Paulo, Editora UNESP, 2003, p. 745), observa o seguinte: «Considera-se tradicionalmente que é injustificável o uso de um pronome demonstrativo o após o

Pergunta:

O termo “Euromaidan”, em rigor, significa “europraça”. Assim se chama porque no fim de 2013 surgiram protestos antigoverno e pró-União Europeia, e eles tiveram como centro a praça da Independência, na capital do país. Ou seja, sendo os protestos pró-União Europeia e centrados numa praça, a palavra “Euromaidan” surgiu, e passou a ser amplamente usada pela mídia.

Após algum tempo, a palavra passou a representar não somente a praça, mas também o movimento inteiro que levou à derrubada do governo naquela época. Na mídia e na escrita acadêmica anglófona, não se fala dos protestos da Ucrânia em si, mas sim do (movimento da) “Euromaidan”. A Real Academia Española, atenta à movimentação, adaptou a grafia ao castelhano: “Euromaidán”. Ela passou a ser usada na hispanosfera normalmente.

A meu ver, a forma natural de se traduzir o termo para o português seria grafando-o como “Euromaidã”. Entretanto, ninguém da mídia portuguesa nem da mídia brasileira o fez. Não encontrei um texto na Internet que o empregasse.

Pergunto:

1. Uma palavra nova aportuguesada só entra nos dicionários caso seja utilizada pelas pessoas? Como isso se define? Qual é o critério?

2. Caso alguém a utilize num texto acadêmico sem que ela esteja registrada num dicionário, poderá esse uso ser criticado?

Resposta:

Por enquanto, não existe um sistema de transliteração do alfabeto cirílico para o alfabeto português que seja aceite universalmente entre falantes de língua portuguesa. Há várias propostas – entre elas, a da Folha de S. Paulo1 –, e até se emprega a norma internacional ISO 92.

Mesmo assim, embora a adaptação proposta pelo consulente seja possível, em princípio, ainda não encontra ela a força necessária para se consagrar, porque o nome que representa não tem tradição ou grande circulação no português oral e escrito. É verdade que, com final, em lugar de -an, se regista Astracã e que o elemento -stan tem o aportuguesamento (i)stão: Cazaquistão, Usbequistão.  Contudo, trata-se de formas que, por razões históricas, foram sendo alteradas por um uso mais frequente ou mais presente em certas práticas discursivas, como sejam, as do jornalismo, as das relações diplomáticas e as da divulgação historiográfica.

Respondendo às perguntas:

– Um aportuguesamento pode ser criado de propósito, de forma planeada, para um registo dicionarístico, mas é corrente este concretizar-se já depois da criação de tal forma, muitas vezes sem se poder atribuir a falantes identificados.

– Quanto a escrever "Euromaidã", trata-se de forma possível, de acordo com o modelo de Amã, adaptação da rom...

Pergunta:

Gostaria de saber se a expressão «cair a cabeça aos pés a», que, segundo as minhas pesquisas, apenas se encontra dicionarizada no dicionário da Porto Editora, pode também expressar a ideia de entusiasmo, isto é, sendo o significado da expressão «ficar estupefacto», gostaria de saber se tal estupefacção pode também transmitir a ideia de estar entusiasmado, empolgado, animado.

Grato pela atenção

Resposta:

A expressão que refere encontra-se registado no Dicionário Infopédia da LínguaPortuguesa (da Porto Editora), com o sentido de «ficar estupefacto» e parece variante da expressão «cair o coração aos pés», que significa «ser desagradavelmente surpreendido» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa), «sentir um grande desapontamento» (Dicionário Infopédia). Existe também ainda outra variante, mas provavelmente mais antiga do que a que o consulente apresenta: «cair a alma aos pés».

Quer «cair o coração aos pés» quer «cair a alma aos pés» têm sentido disfórico, isto é, significam «sentir um profundo abalo causado por um golpe inesperado; ter um grande susto ou surpresa» (António Nogueira Santos, Português – Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas). No que foi possível apurar, observa-se, portanto, que os registos da expressão lhe atribuem um sentido negativo, e não positivo. Contudo, não é impossível que, por extensão semântica, a expressão tenha acabado por significar o contrário, mantendo a sugestão de uma emoção repentina. Mesmo assim, uma pesquisa da Internet ou a consulta de corpora textuais (por exemplo, o Corpus do Português, de Mark Davies) não facultam atestações claras deste último caso.