Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Gostaria de saber o que significa pregão na canção "Lisboa,menina e moça"? Isto porque pregão pode-se referir às figuras típicas que percorriam as ruas dos bairros lisboetas, para reparar tachos e panelas, mas também pode fazer referência aos pregões que as varinas proferiam.

Agradeço desde já a vossa disponibilidade em ajudar.

Resposta:

A palavra pregão denomina qualquer forma de anúncio vocal associado à venda, por vendedores ambulantes,  de géneros ou produtos de qualquer tipo – de tachos e panelas à sardinha e ao carapau.

Começando por recordar os versos do famoso fado cantado por Carlos do Carmo (1939-2021):

Lisboa menina e moça, menina
Da luz que meus olhos vêem tão pura
Teus seios são as colinas, varina
Pregão que me traz à porta, ternura

Nestes versos, ocorre o nome pregão sem referência concreta, podendo,portanto, aludir a qualquer tipo de pregão.

Os pregões podiam ser (e ainda são,os que restam) de vários tipos em função do que se vendia no comércio ambulante. Exemplos:

(1) Quem quer figos, quem quer almoçar! (hoje em desuso)

(2) Olha a fava-rica! (hoje desaparecido, porque já não é hábito preparar a fava-rica1).

(3) Quentes e boas! (para a venda de castanha assada)

(4) Olhà bolinha! (hoje corrente entre vendedores de bolas de Berlim, nas praias da região de Lisboa, durante o verão)

Encontram-se vários outros exemplos em Pregões de Lisboa Antiga.

A palavra pregão terá origem no latim praecoōnis «pregoeiro público, arauto, o que proclama, anuncia ou diz em público» (Dicionário Houaiss; ver também Infopédia). Poderia pensar-se que é um derivado de pregar, cuja primeira sílaba tem e aberto átono; se assim fosse, o vocábulo em causa soaria "prègão", também...

Pergunta:

Já nos explicaram a etimologia da palavra noite, mas conseguem explicar o fenómeno recorrente de, em línguas diferentes, a palavra noite ser mais ou menos n + oito?

Mesmo que todas venham do latim, há alguma razão para esta relação entre noite e oito ou só coincidência?

Resposta:

É uma coincidência que tem que ver com a convergência de certas sequências fónicas do proto-indo-europeu para o latim e deste para o galego-português. A etimologia fundada nos estudos de fonética e semântica históricas assim parecem apontar.

É sem surpresa que se verifica a identificação parcial entre palavras semanticamente equivalentes nas outras línguas românicas: noche/ocho (espanhol ou castelhano); nuit/huit (francês); notte/otto (italiano). Mas não se trata de uma coincidência claramente sistemática no conjunto das línguas românicas, porque em catalão nit,«noite», e vuit, «oito», ou, em romeno, noapte e opt evidenciam que a sequência em comum se estreita e conta apenas dois segmentos: -it- em catalão e -pt- em romeno.

Se se remontar à origem latina de todos os anteriores exemplos – são cognatos, isto é, palavras de línguas diferentes que evoluíram dos mesmos étimos –, tampouco a semelhança da terminação de nocte- (acusativo de nox, noctis, «noite») com octo torna conclusiva uma relação mais profunda do que a coincidência fonética. Na verdade, as raízes do proto-indo-europeu donde decorrem as palavras latinas mostram que apenas a consoante oclusiv...

Pergunta:

Há uns tempos, durante uma curta viagem pelo concelho de Mirandela, deparei-me com a existência de um topónimo muito peculiar, que assumia, na sinalização local, duas grafias: Suçães ou Sucçães.

Algumas fontes relacionam imediatamente a origem de Su(c)çães com a presença de «uma propriedade rústica anterior à Nacionalidade», ou seja, uma villa romana, cujo nome terá evoluído, posteriormente, para Suxães (segundo as Inquirições de D. Afonso III).

Gostaria de saber se, conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, a grafia deste topónimo deve ser originalmente mantida (enquanto Sucçães) ou alterada para Suçães...

Muito agradeço os vossos esclarecimentos.

Resposta:

O topónimo transmontano em questão escreve-se Sucçães conforme a ortografia de 19451, mas Suçães no quadro da norma em vigor, a do Acordo Ortográfico de 19902.

Trata-se de um topónimo muito curioso, porque a grafia com , que a ortografia de1945 fixava, não tem explicação clara, podendo até ser muito discutível.

É verdade que o topónimo aparece sob a forma Suxaes nos Portugaliae Monunenta Historica. Leges. vol VIII (1961), na transcrição das Inquirições de Afonso III. No entanto, não é líquido que tal x fosse a representação gráfica de uma pronúncia medieval correspondente a [ks] (o valor de x em táxi, por exemplo).

Com efeito, pensando que do latim traxui resultou trouxe, que no português padrão soa "trosse", com [s] – apesar de dialetalmente ainda se dizer "trouxe", com o x de baixo, cujo símbolo fonético é [ʃ] –, seria de esperar que, num topónimo com origens medievais e transmitido por via popular, a sequência consonântica [ks] se simplificasse também como segmento simples, a soar [s] ou [ʃ]. Além disso, a consulta das Inquirições de D.Dinis de 1288 parece exibir a forma com apenas um ç, tal como o atual Suçães3. Quase quinhentos anos mais tarde, as 

Pergunta:

Como de fato se escrevem as palavras "Fulani", "Fiji", "Mali", "Bali", "Omani", "Origami", "Tsunami", "Maori", "Hindi", "Bengali", "Somali", já que parece que todas são paroxítonas, embora não tenham acento?

Obrigado.

P.S.– Parabéns a todos que fazem este excelente trabalho no Ciberdúvidas, que é um dos grandes baluartes atuais de nossa língua!

Resposta:

A maior parte dos casos mencionados na pergunta estão fixados pela ortografia, recomendando-se que seja pronunciados como palavras oxítonas: Fiji, Mali, Bali, omani (ou omanense), origami, tsunami, maori, hindi, bengali, somali.

Dentro deste conjunto existem as seguintes variantes paroxítonas. também corretas: tsunâmi, híndi.

Quanto a fulani (adjetivo e substantivo) e Fulani (substantivo usado como etnónimo) – formas alternativas a fula/Fula1 –, são estas formas ainda pouco usadas e ainda em fase de estabilização quanto à sua generalização nos registos lexicográficos em fontes de referência. Em todo o caso, tal como estão atrás grafadas, também se pronunciam como oxítona – cf. Infopédia.

Em nome da equipa do Ciberdúvidas, aqui ficam expressos os agradecimentos pelas estimulantes palavras de apreço no final.

 

1 Fula é a denominação de um grupo étnico que se encontra em vários países da África Ocidental, entre eles, a Guiné-Bissau. A língua ou sistema de dialetos fulas têm sido integrados na família nigero-congolesa.

Cf. 

Pergunta:

No Brasil, é generalizado o uso de azeite para designar óleos, como na expressão «azeite de dendê».

Como consequência, a expressão «azeite de oliva», para se designar o óleo do fruto da oliveira, é típica no país (apesar de que, em Portugal, é considerada pleonástica).

Por isso, pergunto-lhes, há alguma relação entre os termos oliva e óleo, que seriam, nesse caso, os equivalentes de origem latina dos termos de etimologia árabes azeitona e azeite, respectivamente?

Muito obrigado pelo seu excelente trabalho! Desejo-lhes um ótimo ano!

Resposta:

É adequada a descrição que é feita na pergunta sobre a palavra azeite (do árabe zayt, «óleo, essência, azeite») e do contraste existente entre os respetivos usos no Brasil e em Portugal1. No Brasil, é, portanto, frequente a expressão «azeite de oliva», enquanto, em Portugal, se diz apenas «azeite», uma vez que empregamos óleo, em todos os outros casos.

Também se confirma aqui que entre oliva e óleo há uma relação etimológica muito estreita, porque são palavras que partilham o mesmo radical latino, que tinha duas variantes ole- e oli-. Com efeito, óleo vem do nome latino oleum, que significava «azeite», e oliva é adaptação de oliva, que em latim designava a árvore (oliveira) e o fruto chamado correntemente azeitona, ou oliva, que isoladamente ocorre menos (sobretudo em Portugal).

Assinale-se que as palavras latinas constituíam adaptações de duas palavras do grego antigo: com efeito, oleum corresponde a élaion, ou («azeite de oliveira»); e oliva, a elaía, as («azeitona; oliveira»).

Acrescente-se, por último, que azeitona (como o espanhol aceituna) vem do árabe dialetal hispânico (ou árabe andalusi) azzaytúna, que equivale ao árabe clássico zaytūnah, por sua vez um empréstimo da língua aramaica, com a forma zaytūnā, diminutivo de zaytā, «azeite», neste último idioma2. O topónimo português Azeitão (Setúbal) tem origem na mesma raiz árabe, na forma zaytún, «oliveiras», plural de zaytúna3.

 

1 Em espanhol, também se emprega o termo correspondente, aceite, para designar não só o azeite de oliva (ou, numa perspetiva mai...