Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Sobre o uso da expressão «primeira bola a sair do saco»:

Situação 1. Vendo o parque de estacionamento a abarrotar, exclamou, confiante: «– Vou arranjar lugar mesmo ao pé da porta... é a primeira bola a sair do saco!»

Situação 2. Acercou-se da banca de fruta e quis saber o preço das uvas. Ao ouvir a resposta, afastou-se ligeira, resmungando para os seus botões: «É que era a primeira bola a sair do saco dar tanto dinheiro por um 1 kg de uvas...!»

Pergunto qual o contexto correcto em que a expressão deve ser usada.

Agradeço a resposta e aproveito para vos parabenizar pelo vosso trabalho.

 

 O consulente adota a ortografia de 1945.

Resposta:

Parece tratar-se de expressão relativamente recente.

Os contextos identificados numa consulta de páginas da Internet são semanticamente semelhantes aos exemplos mencionados na pergunta e sugerem que os significados oscilam entre «vai acontecer de certeza, felizmente» (ex. 1) e, já em tom irónico, «era o que faltava (ou seja, não é o que devia acontecer»; ex. 2). Tanto num caso como no outro, a expressão, que é metafórica, alude ao escrutínio decidido pelo processo de retirar bolas de um saco opaco: entre várias bolas pretas, que determinam a eliminação, há uma bola branca, que dá a vitória. Como a probabilidade de escolher uma bola preta é maior do que a probabilidade de sair bola branca, compreende-se que se encontrem várias ocorrências da expressão que remetem para um acontecimento indesejável:

(1) «Há duas semanas [Ferro Rodrigues] ouviu as preocupações do CDS sobre o “enclave” Chega que tem na sua bancada. Ferro ainda ponderou obras, mas isso foi posto de parte. Nem assim o problema parece estar resolvido. Foi, aliás, a primeira bola a sair do saco no início da sessão.» ("'"Desculpe, como é que se entra?' O regresso ao Parlamento", Observador, 25/10/2019)

Em suma, a expressão denota um acontecimento que se produz ou pode produzir-se para sorte ou azar de alguém.

Pergunta:

A minha questão é sobre toponímia da serra da Estrela. Não sei se será este o local mais apropriado para a minha dúvida.

Na área mais elevada da serra da Estrela existe um topónimo com a seguinte designação: "Salgadeira / Salgadeiras". O termo salgadeira remete para conservação, por intermédio do sal, composto que, no estado natural, não se encontra na referida área.

Gostaria de saber se a sua designação/criação (salgadeira) poderá ter a ver com a utilização da neve/gelo como forma de conservação através do frio.

Desde o século XVII que há registos de transporte de neve/gelo, a partir das serras da Estrela, Montejunto e Lousã para as cortes e para a nobreza mais abastada. E daí a origem dos poços de neve e da profissão de neveiro.

Caso não consigam responder à minha dúvida, poderiam indicar uma forma para explorar/pesquisar mais informação sobre esta temática?

Indicar, por exemplo, bibliografia ou alguém que em Portugal investigue ou se interesse pela toponímia?

Grato pela atenção dispensada

Resposta:

Os estudos de toponímia envolvem juízos de atribuição etimológica, os quais nem sempre se podem fazer com toda a certeza, sobretudo quando faltam documentos escritos ou de outro tipo.

As lendas populares ou eruditas a respeito das origens dos topónimos, que são muitos importantes para estudos etnográficos, antropológicos ou filológicos, poucas vezes permitem apurar a história do nome de forma criteriosa e científica. Mas é também verdade que muitas vezes falta a documentação que possibilite o esclarecimento das origens e da história de um nome. É por isso que muitas etimologias se configuram como enunciados hipotéticos, o que pode ser uma grande contrariedade para certas atividades de hoje como as do turismo cujos agentes muitas vezes se precipitam em iniciativas culturais meritórias, que, no entanto, carecem de rigor histórico.

Sem pôr de lado a explicação proposta pelo consulente – a de o topónimo ter origem na conservação da neve por meio da aplicação de sal --, há uma outra possibilidade: a de Salgadeiras fazer alusão à existência de salgueiros no local.

Na Alta Idade Média (portanto, em época anterior à fundação do reino de Portugal), era possível fazer referência a um terreno ocupado por estas árvores como «(terra) salicata», expressão que evoluiu para Salgada. Esta é a hipótese que A. Almeida Fernandes propõe no seu Toponímia Portuguesa. Exame a um Dicionário (Associação para a Defesa da Cultura Arouquense, 1999), no qual este autor contesta que topónimos que exibam a raiz salg- sejam todos interpretáveis pela palavra sal. Sendo assim, Salgadeira pode até ser uma reapropriação mais tardia de salgada, ainda alusiva a salguei...

Pergunta:

Enquanto recitava Os Lusíadas, dei-me conta de que em alguns versos a sexta e décima silabas poéticas nem sempre são mais fortes, há versos em que a quarta, a sétima ou oitava, e a décima é que são mais fortes.

Mas há versos d'Os Lusíadas em que parecem ter métrica irregular.

Eu aprendi sobre metro sozinho lendo gramáticas (minha escola passou longe de poesia e fonética), e quando leio poesia, faço a coisa mais de ouvido e lembrando alguns conselhos gerais das gramáticas. Ex: «De Áfrico e de Noto a força, mais se atreve» Canto I, verso 212 o No também é pronunciado com certa intensidade, mas ficaria estranho: 5.ª, 6.ª e 10.ª.

Há alguma recomendação para o estudo correto de métrica e recitação (principalmente d'Os Lusíadas)?

Resposta:

Há um erro no verso transcrito, que corretamente é como a seguir se apresenta:

(1) De Áfrico e Noto a força, mais se atreve

Este verso é regular.

No entanto, é conhecido o facto de vários versos divergirem deste modelo, conforme se assinala e comenta no Dicionário de Camões (Lisboa, Editorial Caminho, 2011):

«[...] indicaremos a presença, além dos versos decassílabos acentuados normal e predominantemente na 6.ª e 10.ª sílabas, como na estrofe acima, de versos considerados, por alguns autores, fora da norma: Acentuação na 4.ª, 8.ª e 10.ª sílabas: "De África as terras e do Oriente os mares" (Os Lusíadas, I.15). Ritmo do chamado decassílabo sáfico, mais usado na poesia lírica. Outro exemplo: «De consciência e de virtude interna» (Os Lusíadas, VIII.54). Acentuação na 3.ª, 8.ª e 10.ª sílabas. Ex.: "Sacras aras e sacerdote sancto" (Os Lusíadas, II.15). Forma variante do decassílabo sáfico. Acentuação na 5.ª e 10.ª sílabas: «Dizem que, por naus que em grandeza igualam» (Os Lusíadas, V.77). Aqui se trata do chamado verso decassílabo de arte maior, com acentuação na 5.ª e 10.ª sílabas. Os chamados versos de arte maior, normalmente, são acentuados na 5.ª e na 11.ª sílabas. Mas aparecem ao lado de versos com acentuação na 5.ª e na 10.ª sílabas, resultantes da soma de dois versos de cinco sílabas, chamados de versos de redondilha menor, na tradição rítmica do idioma. Acentuação na 4.ª, 7.ª e 10.ª sílabas: "De vossos Reinos, será certamente" (Os Lusíadas, VII.62). Trata-se do chamado verso decassílabo de gaita galega, de origem trovadoresca: as populares muiñeras [sic] (cantigas de moinho). Acentuação na 4.ª e 10.ª sílabas. Aqui se trata do decassílabo a minori, encontrado na épica: "...

Pergunta:

Ando pela rua e depois oiço a juventude a dizer  «ó guna, como é que estás?».

Fico intrigado com o que eles dizem e gostava que me esclarecessem a minha dúvida.

Obrigado.

Resposta:

Encontra-se uma descrição bastante esclarecedora no Dicionário Priberam, onde se define guna como o mesmo que «Jovem urbano, geralmente associado às camadas sociais mais desfavorecidas, de comportamento ruidoso, desrespeitoso, ameaçador ou violento e que tem gostos considerados vulgares (ex.: usava o boné de lado, como os gunas)». A mesma fonte também regista a expressão «andar à guna», que se dá como típica do Porto e que significa «andar pendurado do lado de fora da porta de um transporte público, sobretudo nos eléctricos, sem pagar bilhete». Tanto o dicionário consultado como o Dicionário Infopédia filiam guna no inglês goon, «rufia, valentão»1.

Pode ler-se a propósito (e relacionando curiosamente a expressão ao uso da máscara durante a pandemia de covid-19) o texto "Hoje, vi um gajo a “andar à guna" num carro elétrico", de Gustavo Carona e saído no jornal Público em 16/11/2020.

1 Em sentido equivalente a «rufia, bandido», o Lexico.com regista goon como uso norte-americano.

Pergunta:

Estava perguntando-me aqui o motivo de não haverem traduzido o título do livro de Gustave Flaubert Madame Bovary para "Dona Bovary". Vamos por partes.

No Brasil podemos referir-nos a uma mulher desconhecida de X maneiras:

1) Senhora – tanto para velhas como novas.

«A senhora irá à festa de Carlos.»

«Que horas são, senhora?»

Pode-se acrescentar o pronome possessivo minha para suavizar o solenidade. Se a mulher for casada ou a sogra, às vezes prefere-se usar dona.

2) Dona – sempre acompanhado do nome.

«A dona Ivete morreu ontem, sabia?»

«Dona Cleide, a senhor pode me fazer um favor?»

3) Madame, senhorita e senhorinha – de maneira mordaz, sarcástica.

«Então quer dizer que a madame não gosta do que faço?»

«Eu aqui trabalhando. E a senhorita aonde? A senhorita só na gandaia.»

«E a senhorita quer tudo de mão beijada? Quer que lhe lave as roupas, que faça o café, o almoço, a janta?»

Parece-me, de acordo com o uso no Brasil, o melhor seria "Dona Bovary".

Resposta:

Não sendo impossível, o parecer do consulente confronta-se com alguns problemas de uso do termo dona, quer no Brasil, quer em Portugal, quer, ainda, noutro país ou região de língua portuguesa.

Assim:

– Em relação ao uso de senhora, descrito em 1), ocorre aproximadamente o mesmo em Portugal, embora aqui,como vocativo, se tenda a dizer «minha senhora», e nunca ou raramente «dona».

– O título de dona, como indicado em 2, no comentário, tem sempre associado o primeiro nome, e nunca o sobrenome (em Portugal, apelido): uma pessoa que se chame Ivete Silva será sempre «a Dona Ivete» ou «a Senhora Dona Ivete», mas não *«Dona Silva» nem *«Senhora Dona Silva» (o * indica que é uso não aceite).

– Sobre 3, madame pode efetivamente ser usado em tom sarcástico, e até se regista a forma vulgar madama que reforça essa intenção. Sobre senhorita, nada a acrescentar, a não ser o facto de não se empregar em Portugal.

Acontece que, de acordo com 2,  "Dona Bovary" é impossível, porque é sobrenome; o mais que se poderá fazer é adaptar como «Dona Emma» (ou «Dona Ema»), uma vez que o primeiro nome da personagem é Emma (Ema em português"). Esta solução não será a mais satisfatória, porque, entre outros motivos, no romance de Flaubert a personagem  do marido, Charles Bovary, é de enorme importância, como se pode supor num romance que aborda o adultério.

Em alternativa, seguindo modelo de «senhora Thatcher» ou «senhora Merkel», que é frequente nos textos mediáticos, poderia propor-se «Senhora Bovary», uma solução preferível à anterior e muito semelhante ao que se faz em várias línguas eslavas (por exemplo, em polaco,