Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

É com humildade que realizo a minha primeira pergunta nesta plataforma, aos professores que tanto admiro.

A dúvida é curta: qual a etimologia do substantivo "boca-de-lobo" (no que tange ao seu sentido de «bueiro»)?

Procurei-a no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, mas, embora lá conste a definição do nome, não há sugestão de suas raízes etimológicas. Demais, na Infopédia e no próprio Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, sequer há o seu registro¹.

Poderia ser que, originalmente, a expressão dissesse "boca-de-lodo", em vez de "boca-de-lobo"? Desde já, agradeço pela atenção e conhecimento despendidos.

¹ Data das consultas: 15.03.2021.

Resposta:

Como o mesmo que bueiro (em Lisboa, prefere-se sarjeta), isto é, «abertura para esgoto de águas superficiais», boca de lobo escreve-se sem hífenes, ao abrigo do acordo ortográfico em vigor (Base XV)1. A palavra está registada no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, bem como no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, mas confirma-se que não se encontra na Infopédia. De qualquer forma, observe-se que, em Portugal, o vocábulo parece pouco ou nada usado na referida aceção2.

As fontes citadas não confirmam a origem proposta pelo consulente. Em nota etimológica, o Dicionário Houaiss é omisso quanto à etimologia de boca de lobo no sentido de «bueiro, sarjeta» e, referindo-se a boca de leão numa outra aceção («peça fêmea de endentação triangular»), nada adianta sobre as origens do termo. Pode ser também que a palavra seja devida a um uso metafórico: o buraco para escoamento de águas é como a boca de um lobo voraz.

1 Antes da vigência da atual norma ortográfica, escrevia-se com hífenes: boca-de-lobo (cf. Dicionário Houaiss, 1.ª edição, de 2001).

2 Outras aceções segundo o Priberam: «tampa ou grade escoadouro (nas ...

Pergunta:

Creio que percebo o sentido de por entre (aliás, uma resposta anterior do Ciberdúvidas fortaleceu-me nessa opinião). No entanto, pergunto-me se podemos sempre usar entre onde por vezes nos parece melhor por entre.

Acabo de ler uma frase que termina com «ouvindo o sussurro do vento entre as árvores». Neste caso, parece-me que o correto deve ser «por entre as árvores», como se estivéssemos a falar de um movimento que ocorre no interior da floresta... Não sei se estou a ser claro.

Em suma, gostava de saber se há alguma diferença clara entre entre e por entre. No exemplo que acabo de dar, não deveria ler-se por entre?

Muito obrigado.

Resposta:

A sequência «ouvindo o sussurro do vento entre as árvores» não está incorreta. Pelo contrário, é tão correta como «ouvindo o sussurro do vento por entre as árvores».

Há no entanto, dois aspetos semânticos a considerar na ocorrência da preposição entre e na combinação de preposições por entre1 no contexto em apreço:

1. Subentendendo o verbo passar ou outro verbo de movimento (correr, deslocar-se), aceitam-se «ouvindo o sussurro do vento passar entre as árvores» e «ouvindo o sussurro do vento passar por entre as árvores». Há, claro, uma diferença de significado, sendo a segunda versão da frase mais dinâmica, a sublinhar a travessia (a do conjunto de árvores).

2. A expressão «ouvindo o sussurro do vento por entre as árvores» pode ter um grau de ambiguidade menor por comparação com «ouvindo o sussurro do vento entre as árvores». Com efeito, com a preposição simples, pode dar-se à oração dupla interpretação: «o vento passa entre as árvores» e «quem ouve está entre as árvores». Na versão com a sequência prepositiva por entre1, reduz-se a ambiguidade, porque o conhecimento da realidade extralinguística permite aceitar que o quadro dinâmico em referência é resultado do vento e não do sujeito que ouve.

 

1 O Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (2002) classifica por entre como locução prepositiva. Contudo, na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020, pp. 1505), só até a constitui uma locução prepositiva formada por duas preposições. Casos como por entre («A prancha ...

Pergunta:

Eu gostaria de saber o que significa esse ò com acento grave, que encontrei no dicionário Priberam:

Co-ra-gem (ò) significa que o som da letra é aberto, é isso?

Obrigado!

Resposta:

Trata-se de uma indicação de pronúncia. O símbolo ò indica que se trata de um o aberto mas átono, isto é, produzido numa sílaba que não recebe acento tónico.

Essas indicações de pronúncia relativas às vogais são importantes para quem fala o português de Portugal, porque, embora as vogais átonas sejam geralmente muito fechadas, há também muitas exceções. Assim, a palavra coragem, tal como figura em «ter coragem», soa "curagem" em Portugal. Contudo, coragem, no sentido de «ação de corar», tem o aberto átono e soa "còragem" em Portugal.

No português europeu, coragem ("curagem") e coragem ("còragem") são, portanto, palavras homógrafas, isto é, escrevem-se da mesma maneira, mas têm uma articulação ligeiramente diferente. O acento grave da indicação de pronúncia – ò – associada ao segundo dos vocábulos mencionados permite informar que a vogal é aberta mas átona.

Pergunta:

"Esgravatar" ou "esgaravatar"? Existem as duas opções como válidas?

Obrigada.

Resposta:

Ambas as formas estão corretas.

As fontes dicionarísticas, mais ou menos recentes1, registam ambas as formas, apresentando-as como corretas e sinónimas. O Dicionário Houaiss (2001) assinala que esgravatar é variante de esgaravatar, «remexer (a terra)»2, em resultado da queda da vogal medial a. Chama-se síncope a este fenómeno de supressão de um segmento no interior de uma palavra (cf. Dicionário Terminológico).

1 Foram consultados o Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), de Rebelo Gonçalves, e o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (2001). 

2 O verbo, nas duas formas, ocorre nas seguintes aceções: «remexer a terra com as unhas»; «procurar um objeto oculto»; «remexer; escarafunchar»; «deitar pólvora na escorva de (arma de fogo); escorvar», na linguagem militar; e «pesquisar», como extensão metáfórica (Infopédia).

Pergunta:

Desde sempre que vejo registado – livros, revistas e outros – a tristemente célebre Schutzstaffel, ou as suas variantes, de funções bélicas e administrativas, Allgemeine, Waffen, Totenkopfverbände, etc.,do Estado nazista (III Reich), indicadas por «(as) SS», de acordo com o duplo símbolo rúnico (?) de esses estilizados.

Mas será correto escrever e dizer «(as) SS» (plural)? Só porque se abrevia com dois esses?

Sendo uma força militar/ grupo paramilitar, tal como foi no nosso país a Legião Portuguesa, não será, porventura, mais correto escrever-se e dizer-se «(a) SS», como organização militar, que embora coletivo, por natureza, é uma unidade como organização?

Obrigado.

Resposta:

A expressão alemã Schutzstaffel é realmente um nome composto singular em alemão: Schutz («proteção, defesa») + Staffel («equipa, unidade») – cf. Schutzstaffel dicionário Langenscheidt alemão-inglês. Empregado no singular, também ocorre noutras línguas (francês, catalão).

Em português seria de esperar também o singular na sua tradução – cf. SS no dicionário Infopédia alemão-português –, mas no discurso enraizou-se o plural, como que subentendendo «unidades, forças, tropas». Em espanhol, parece acontecer o mesmo.

Pode, portanto, considerar-se o singular – «a SS», como «a Gestapo» – uma forma indiscutivelmente correta. Contudo, o plural também se aceita pela força do uso.