Pergunta:
Em Auto de Filodemo, de Luís de Camões, há uma passagem coloquial assim:
«Dionísa: Cuja será? Solina: Não sei certo cuja é.»
Em linguagem hodierna, seria mais comum ouvir/ler «de quem será?», «não sei certo de quem é».
Esse uso de cujo lembra-me o uso de cujus no latim:
Cujus filius Marcus est? («De quem Marcos é filho?»)
Em seu livro, Tradições Clássicas da Língua Portuguesa, o Padre Pedro Andrião diz ser possível tal uso e dá-nos uma lista grande de exemplos nos autores clássicos, desde Camões, Sá de Miranda, a Garrett, Camilo etc.
Pois então, vos pergunto, que recomendam? É lícito o uso?
Resposta:
Já não é uso atual em nenhum dos países de língua portuguesa.
O latim cuius significava «de quem» e era a forma que marcava posse (genitivo) do pronome relativo qui e do pronome interrogativo quis, os quais significavam «que, o qual, quem». Na fase medieval da língua, como Rosa Virgínia Mattos e Silva1 aponta, encontra-se atestado este uso de cujo/a:
(1) E o nobre Venancio cuja [= de quem] era a vila (Diálogos de São Gregório).
(2) E d'hi hũu certo tempo tornou a cadella cuja [=de quem] era a casa (Fabulário Português)
No Corpus do Português (Mark Davies) encontram-se exemplos mais tardios deste valor de cujo/a, mesmo em José de Alencar (1829-1877), mas parece tratar-se de casos relacionados com uma linguagem erudita ou arcaizante.
Em suma, é sempre possível e aceitável recuperar um arcaísmo, como acontece por vezes na expressão literária. Mas será estranho e até desadequado empregar cujo no sentido de «de quem» na língua corrente, mesmo em instâncias formais, até pelo risco de comprometer a inteligibilidade do discurso.
1 Cf. Rosa Virgínia Mattos e Silva, O Português Arcaico. Uma aproximação, vol. II, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008, p. 244.