Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Li por aqui uma resposta de 24/10/2017 ("Derivação não afixal não pode levar afixos") enquanto buscava sanar uma dúvida muito frequente quando trato de processos de formação de palavras em sala.

Como identificar se a formação é deverbal/regressiva, formando substantivos, ou sufixal para formação de verbos?

No caso, a dúvida surgiu com a palavra processo: trata-se de formação deverbal de processar ou o verbo forma-se, por derivação sufixal, do substantivo processo?

Para além desse caso, é possível estabelecer algum parâmetro? Como a referida resposta cita, a única saída seria o conhecimento de história da língua, da origem de cada vocábulo?

Muito obrigado!

Resposta:

A resposta está mesmo no conhecimento da história da língua, ou seja, não há uma regra precisa que permita distinguir um derivado não afixal de um substantivo que esteja na base de um verbo derivado. 

Mesmo assim, há autores que têm proposto critérios para essa distinção, como é o caso de Rio-Torto et al., Gramática Derivacional do Português (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, pp. 123/124), que propõem o seguinte1:  

«[...] [C]omo distinguir se, num par N/V, é o verbo ou o nome o derivado? Vejam-se os seguintes pares muro/murar, mura/murar. A observação da estrutura fonológica e morfológica não deixa perceber em que situações é que o nome é derivado ou derivante. Os critérios que permitem essa identificação [...] são: 

1) o nome é derivado e o verbo derivante se estiverem presentes os prefixos a-, en-, es- . Dado que são prefixos que operam apenas na formação de verbos, deduz-se que não podemos estar perante rugaN > enrugaN > enrugarV, mas sim perante rugaN > enrugarV > enrugaN;  

2) se o nome tiver apenas semantismos de caráter concreto, o nome é derivante e o verbo derivado (muro ‘estrutura que separa um terreno’ > murar ‘prover de muro’). Se, para além de semantismos concretos, o nome apresentar significação abstrata de evento, o nome é derivado (murar ‘caçar ratos, o gato’ > muraN ‘evento de o gato caçar ratos’; colher ‘apanhar’> colhaN ‘evento de apanhar’). 

3) se o nome tiver acentuação esdrúxula, ou seja, não coincidente com a acentuação geral dos nomes do português, o nome é derivante (âncora > ancorar, acúmulo > acumular). 

4) se o nome tiver estrutura argumental, o nome é derivado (a colha do morango pelos...

Pergunta:

Na expressão «nos idos do Império Romano», como o Império Romano não existe mais, remetendo-se, obviamente, a um passado distante, o uso do termo idos não seria redundante e desnecessário? Por fim, qual o equivalente vocabular mais próximo de idos?

Resposta:

Alguns dicionários1 incluem na entrada de ido, «o que se foi; passado», a expressão «nos idos de», em que ido ocorre no plural com o significado de «o tempo passado».

Assim como diz e escreve «idos da década de 80», também é correto «nos idos do Império Romano», com o significado de «no tempo do Império Romano» sem se detetar aqui uma clara redundância.

É de notar que também se regista idos, palavra que também denota uma localização temporal, mas no contexto do calendário da Roma Antiga: «o dia 15 de março, maio, julho e outubro, e o dia 13 dos outros meses, no calendário dos antigos romanos» (Dicionário de Caldas Aulete). Trata-se de palavra homónima da anteriormente mencionada, sem origem comum, porque o termo idos do calendário romano remonta ao latim «idus,ŭum (no sentido definido), do verbo latino idŭo, as, , ātum, āre no sentido de "dividir, separar", de origem etrusca» (Dicionário Houaiss).

 

1 Foram consultados o Dicionário Houaiss, o 

Pergunta:

O verbo frequentar é descrito como «ter certa convivência com» ("frequentar", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa),  e «viver na intimidade de; conviver com» (Dicionário infopédia da Língua Portuguesa).

Encontro, no entanto, apenas um exemplo desta aplicação, no Dicionário Online do Português: «Possuir convivência com; ter intimidade ou ser íntimo de: "ele gostava de frequentar bares noturnos"», o que não se afigura de tudo um bom exemplo.

Em que medida e situações o verbo frequentar pode ser usado para exprimir «viver na intimidade de; conviver com»?

Resposta:

Encontram-se abonações da aceção em questão no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa:

«2. ter intimidade ou relações constantes com alguém ou com um determinado grupo social, passando algum tempo na sua companhia sinónimos conviver; «a história do senhor muito rico que, admoestando os rapazes que frequentavam as reuniões das filhas, recomendava que fizessem o que quisessem, mas não sujassem os resposteiros.» (J. De Sena, Sinais de Fogo, p. 48) [...].»

Note-se que, quando frequentar tem um complemento direto realizado por um grupo nominal com núcleo num nome que denota um ser humano, o significado torna-se sexual, associado, por exemplo, à prostituição:

«[...] «As prostitutas tinham predilectos, e nós frequentávamos de preferência esta ou aquela.» (J. De Sena, Sinais de Fogo, p. 104)» (ibidem).

Três equívocos e o velho erro
A atualidade nos tropeções da língua mediática

Continuando a surpreender confusões e velhas incorreções no que se ouve e lê nos media portugueses, o consultor Carlos Rocha regista quatro ocorrências: advento, por evento; aprender por apreender; encrostar por incrustar; e um velho erro, "interviu", por interveio.

Pergunta:

Venho por este meio pedir algum esclarecimento sobre os substantivos grémio (masc.) e guilda (fem.), que apresentam certo grau de sinonímia nas aceções recolhidas em vários dicionários embora nos textos de História, diversamente, pareçam corresponder a realidades diferentes. Transcrevo, para ilustrar, o seguinte trecho:

«Os soldados pertenciam frequentemente a associações conhecidas como collegia. Eram similares aos grémios comerciais ou às guildas do mundo civil e, à semelhança destes, a sua organização incluía oficiais, regras e protocolos.» Gladius. Viver, lutar e morrer no Exército Romano, De La Bédoyère, Guy. Ed.Crítica.

Indico também a seguir os significados dados por alguns dicionários para estes dois vocábulos.

Grémio • Dicionário Houaiss: «5.1 Corporação de ofício (Ex.: ).» • Porto Editora online: «Grupo de entidades patronais que exploram ramos de comércio ou indústria mais ou menos afins.»

Guilda • Dicionário Houaiss: «Associação que agrupava, em certos países da Europa durante a Idade Média, indivíduos com interesses comuns (negociantes, artesãos, artistas) e visava proporcionar assistência e proteção aos seus membros.» • Dicionário Priberam da Língua Portuguesa: «Organização de mercadores, de operários ou artistas ligados entre si por um juramento de entreajuda e de defesa mútua.» • Porto Editora online: «(HISTÓRIA) associação corporativa medieval que agrupava os indivíduos de um mesmo ofício (mercadores, artesãos, etc.) para fins de assistência e proteção de interesses comuns, geralmente regida por regras próprias e com jurisdição e privilégios exclusivos.»

Poderão comprovar do anterior que grémio e guilda são ambos definidos como corporações de ofício.

Acho, contudo, que no contexto da História e dos estudos históricos não são sinónimos.

Visto que a minha procura n...

Resposta:

A palavra grémio tem uso mais corrente do que guilda, palavra que se usa sobretudo em informação e estudos históricos (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).

A diferença que se faz na sequência citada na pergunta provém da tradução portuguesa de Gladius. The World of the Roma Soldier, resulta de um opção do tradutor. O que se lê no texto original em inglês é o seguinte:

(1) «These were similar to trade associations or guilds in the civilian world [...].»

Em português, a opção do tradutor foi como segue:

(2) «Eram similares aos grémios comerciais ou às guildas do mundo civil»

Contudo, também se poderia ter escrito «similares às associações de comércio ou aos grémios do mundo civil».

Note-se que, consultando, por exemplo, o Dicionário Houaiss, se constata que grémio é palavra atestada em português desde o século XVI, enquanto guilda só terá atestações a partir do século XX. Isto mesmo se confirma numa pesquisa no Corpus do Português: guilda só ocorre em textos recentes, sobretudo em enciclopédias, enquanto grémio tem uso bem mais antigo, desde Camões e António Vieira, muitas vezes como sinónimo de «seio, meio, colo, regaço» e, por extensão, «qualquer lugar, instituição etc. que ofereça repouso, abrigo», para mais tarde aparecer como sinónimo de sociedade e associação, na aceção de «conjunto de pessoas organizadas em torno de um objetivo político, cultural, social, religioso, desportivo etc.» (cf. Dicionário Houaiss).

Em conclusão, grémio tem ma...