Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Apareceu-me a expressão «por métodos deráchicos», e não consigo encontrar o significado de deráchicos.

Alguém me poderá ajudar, por favor?

Resposta:

É um adjetivo derivado de derache, um dos aportuguesamentos da forma hebraica darasha, «inquirir», que entra na formação do nome midrash, referente à «tradição de releitura e interpretação judaica das Escrituras» (cf. "O método deráshico e o Novo Testamento", artigo em que figuram as formas derásh e deráshico).

O adjetivo deráchico quer, portanto, dizer «relativo ou pertencente à interpretação judaica do texto bíblico».

Na Infopédia, regista-se midrash e midráshico.

Pergunta:

Quando e por que a palavra escritor passou a designar apenas quem escreve (produz) livros?

Pergunto isso, pois, justamente, os seguintes autores de textos não são comumente designados de escritores: quadrinista/banda desenhista (de histórias em quadrinhos/bandas desenhadas), piadista (de piadas), charadista (de charadas), citador (de citações) e letrista (de letras musicais)!

Obrigado.

 

Resposta:

O conceito de "escritor" como «indivíduo que escreve obras literárias, geralmente de ficção e em prosa» não é exclusivo do português. Na verdade, é um conceito que se encontra noutras línguas de origem europeia, provavelmente por influência do latim, língua em que já se documenta a palavra scriptor, que está na origem de escritor em português e escritor em espanhol, ou de scrittore, em italiano. No francês écrivain a raiz é a mesma, mas a forma da palavra é a mesma do português escrivão. Em inglês, writer é mera transposição do latim scriptor, e em alemão a palavra é mais elaborada, Schriftsteller, mas também tem parcialmente origem no latim.

Em português, sabe-se que escritor, sob a forma scriptor, surge, pelo menos, desde o século XV, por exemplo, no contexto da discussão da importância da Sagrada Escritura:

(i) «Nom te escandalize ou entristeça a autoridade do scriptor, ora seja de grande ou de pequena leteradura, mas costrangate o amor da pura verdade.» (Imitação de Cristo, 1477, in Corpus do Português).

Ao longo da sua história, a palavra escritor teve, portanto, vários significados, entre eles o de «autor». É provável que o significado de «autor literário» se deva à especialização paralela que ocorreu nos termos equivalentes do espanhol, do francês, do italiano ou mesmo do inglês.

Pergunta:

Gostaria de ser esclarecida, se possível, relativamente aos vocábulos penicilina e vacina.

Poderá existir aqui uma relação de hiperónimo-hipónimo?

Obrigada.

Resposta:

Entre penicilina e vacina não existe uma relação lexical de hierarquia, entre um termo genérico (hiperónimo) e outro mais específico (hipónimo).

Na verdade, a penicilina é uma substância antibiótica (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa), e um antibiótico não é o mesmo que uma vacina.

Sendo assim, do ponto de vista das denominações usadas no campo lexical da medicina, o mais que se pode dizer é que penicilina é um hipónimo de antibiótico, e este termo é hiperónimo daquele. Vacina não é, portanto, hiperónimo de penicilina, nem este vocábulo é hipónimo daquele.

Pergunta:

Lendo o livro de Jó, capítulo primeiro, versículo 7, na Bíblia de João Ferreira de Almeida, eis que me deparo com a seguinte construção, a meu ver, pelo menos, atípica utilizando a preposição de em associação com o verbo vir (pelo menos com verbo no infinitivo):

«[...] E o Senhor disse a Satanás: "Donde vens?" E Satanás respondeu ao Senhor, e disse: "De rodear a terra, e passear por ela." [...]»

O meu questionamento é quanto à classificação da oração infinitiva introduzida pela preposição de, porque, a meu ver, esta oração expressa uma circunstância de lugar, como por exemplo equivalendo ao uso do substantivo roda ou da vigília do mundo . E, assim do ponto de vista sintático, esse substantivo em conjunto com a preposição formaria um adjunto adverbial expressando circunstâncias de lugar, o que me leva a deduzir que a referida oração infinitiva poderia ser classificada como adverbial de lugar.

Estou errado? Existe uma outra explicação para o fato?

Obrigado.

Resposta:

Como já tem sido observado noutras respostas, nem sempre é possível emitir juízos sobre a gramaticalidade de usos do passado, porque o funcionamento pretérito da língua pode ser diverso do funcionamento contemporâneo.

Mesmo assim, o exemplo em questão é interpretável à luz da contemporaneidade, como construção de valor aspetual perfetivo, que é próxima de acabar + infinitivo e conjuga o valor locativo de onde com a noção de origem do movimento associada ao verbo vir . Esta construção, que alguns puristas consideravam galicismo, encontra-se no português século XVI, portanto, antes de o impacto da língua francesa se ter feito sentir:

(1) «Ficai aqui com esta gente, e não façais muito rumor, que eu quero ir ver o que este viu, que me parece sonho, porque ele vem de dormir debaixo do pé de ûa árvore.» [João de Barros, Décadas (Década Terceira, livros I-X), in Corpus do Português].

Sobre esta construção lê-se no Dicionário Houaiss:

«[...] seguido de gerúndio ou de a ou de + infinitivo, funciona como verbo auxiliar, exprimindo "ocorrência de ação" (aspecto incoativo) [...]: a tardinha vinha caindo; a afta veio a formar-se depois que feri a gengiva; e se ele vier a procurá-la de novo?; Laura vinha exatamente de se desfazer daquelas roupas [...].»

Esta construção permite, por conseguinte, exprimir uma ação recém-terminada, construindo-a me...

Pergunta:

Como ordeno alfabeticamente as palavras avó e avô?

Resposta:

Não foi aqui possível identificar regra para esclarecer a questão, e o presente parecer baseia-se na consulta de vários dicionários.

A consulta de vários dicionários permite observar que atualmente se tende a colocar a forma com acento agudo – avó – antes da forma com acento circunflexo – avô (cf. Dicionário Houaiss e dicionário impresso da Academia das Ciências de Lisboa). Dicionários mais antigos apresentam avô antes de avó, talvez porque se dava prioridade às formas do género masculino (cf. Morais, 10.ª edição e dicionário de Cândido de Figueiredo).