Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor
<i>Fórum</i>, <i>foro</i> e psiquiatria
Uma destrinça necessária

O caso de um comentário feito nas redes sociais, em que ocorre a expressão «"fórum" psiquiátrico», motiva este apontamento do consultor Carlos Rocha, a respeito das relações etimológicas, semânticas e lexicais entre as palavras fórum e foro.

Pergunta:

«Ainda em cima» é o mesmo que «ainda por cima»? Gostaria de que me classificassem essas locuções.

Muito obrigado!

Resposta:

«Ainda em cima» significa o mesmo «ainda por cima», mas terá sido expressão mais corrente na língua do século XIX, pelo menos, a avaliar por algumas abonações literárias:

(1) «Depois da vitória, o leão fez a partilha do costume; e ainda em cima pôs-se a devorar o sendeiro que o auxiliara.» (Almeida Garrett, O Arco de Santana, 1845-1850 in Corpus do Português)

(2) «Veja o que é ser criança! Não parece que ainda em cima me zango com a senhora?» (Machado de Assis, A Mão e a Luva, 1874, ibidem)

Pergunta:

A minha mãe, com 83 anos agora, costuma dizer para quando alguém está a fazer algo a pouco e pouco «...aos pejelhos». No outro dia disseram-me que o correto é «aos bochechos».

Como são palavras tão diferentes, fiquei a pensar se não existiria outra palavra. Provavelmente não seria pejelhos, mas algo semelhante.

Tem conhecimento disso?

Obrigada

Resposta:

Nos dicionários aqui consultados1, não se encontra registo da palavra que refere.

Trata-se, com certeza, de regionalismo raramente ou nunca recolhido, que fica registado, enquanto não se acha outra informação. Não se julgue, porém, que «aos bochechos» é mais correto ou a única expressão correta, porque, no domínio da linguagem regional, há grande variação e margem de tolerância para a diversidade, até porque se trata de usos característicos de registos informais. 

1 Ver Dicionário de Expressões Populares, de Guilherme Augusto Simões, Priberam, Infopédia, Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa, de António Morais Silva, Houaiss e Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea de Academia das Ciências.

Pergunta:

Venho rogar a V. Exas. o favor de me informarem dos termos em inglês que formaram o acrónimo TVDE.

 

Obrigado.

Resposta:

Não se confirma que se trate de sigla de expressão inglesa.

Na verdade, em Portugal, TVDE constitui uma sigla que corresponde à expressão «transporte em veículo descaracterizado a partir de plataforma eletrónica», conforme se lê na Lei n.º 45/2018, de 10 de agosto. Observe-se que é uma sigla sui generis, pois parece subentender não a expressão que a lei apresenta por extenso – «transporte em veículo descaracterizado a partir de plataforma eletrónica» –, mas, sim, «transporte em veículo descaracterizado eletronicamente».

Esta sigla destina-se a ser exibida num dístico que se afixa no carro ao serviço, em lugar visível, e «identifica todos os veículos que trabalham para plataformas de transporte privado, como a Uber, a CabifyTaxify ou a Kapten»1. ("O que significa o dístico TVDE que circula em alguns carros?", Idealista/News, 19/11/2019).

 

1 A Cabify deixou de operar em Portugal a partir de 30/11/2019. A Taxify passou a chamar-se Bolt em março de 2019. A Kapten faz p...

Pergunta:

Na frase «Os amigos ajudam-se um ao outro», qual o objeto direto?

Qual o objeto indireto?

Qual a função sintática do vocábulo se?

Obrigado.

Resposta:

O pronome se é recíproco, com a função de objeto direto (cf. «ajudar alguém», que configura um verbo transitivo direto).

A expressão «um ao outro» serve de reforço ao pronome recíproco e não envolve um objeto indireto. Não se faz a sua análise interna.

Sobre as construções pronominais de reciprocidade, dizem os gramáticos Celso Cunha e Lindley (Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lexikon Editora, 2016, p. 294):

«3. Como são idênticas as formas do pronome recíproco e do reflexivo, pode haver ambiguidade com um sujeito plural. Por exemplo, uma frase como a seguinte:

Joaquim e Pedro enganaram-se.

pode significar que o grupo formado por Joaquim e Pedro cometeu o engano, ou que Joaquim enganou Pedro e este a Joaquim. Costuma-se remover a dúvida fazendo-se acompanhar tais pronomes de expressões reforçativas especiais. Assim: [...]

b) para marcar expressamente a ação recíproca, junta-se-lhes, ou uma expressão pronominal, como "um ao outro", "uns aos outros", "entre si":

Joaquim e Pedro enganaram-se entre si.

Joaquim e Pedro enganaram-se um ao outro.

ou um advérbio como reciprocamente, mutuamente:

Joaquim e Pedro enganaram-se mutuamente.»