Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Lendo o livro de Jó, capítulo primeiro, versículo 7, na Bíblia de João Ferreira de Almeida, eis que me deparo com a seguinte construção, a meu ver, pelo menos, atípica utilizando a preposição de em associação com o verbo vir (pelo menos com verbo no infinitivo):

«[...] E o Senhor disse a Satanás: "Donde vens?" E Satanás respondeu ao Senhor, e disse: "De rodear a terra, e passear por ela." [...]»

O meu questionamento é quanto à classificação da oração infinitiva introduzida pela preposição de, porque, a meu ver, esta oração expressa uma circunstância de lugar, como por exemplo equivalendo ao uso do substantivo roda ou da vigília do mundo . E, assim do ponto de vista sintático, esse substantivo em conjunto com a preposição formaria um adjunto adverbial expressando circunstâncias de lugar, o que me leva a deduzir que a referida oração infinitiva poderia ser classificada como adverbial de lugar.

Estou errado? Existe uma outra explicação para o fato?

Obrigado.

Resposta:

Como já tem sido observado noutras respostas, nem sempre é possível emitir juízos sobre a gramaticalidade de usos do passado, porque o funcionamento pretérito da língua pode ser diverso do funcionamento contemporâneo.

Mesmo assim, o exemplo em questão é interpretável à luz da contemporaneidade, como construção de valor aspetual perfetivo, que é próxima de acabar + infinitivo e conjuga o valor locativo de onde com a noção de origem do movimento associada ao verbo vir . Esta construção, que alguns puristas consideravam galicismo, encontra-se no português século XVI, portanto, antes de o impacto da língua francesa se ter feito sentir:

(1) «Ficai aqui com esta gente, e não façais muito rumor, que eu quero ir ver o que este viu, que me parece sonho, porque ele vem de dormir debaixo do pé de ûa árvore.» [João de Barros, Décadas (Década Terceira, livros I-X), in Corpus do Português].

Sobre esta construção lê-se no Dicionário Houaiss:

«[...] seguido de gerúndio ou de a ou de + infinitivo, funciona como verbo auxiliar, exprimindo "ocorrência de ação" (aspecto incoativo) [...]: a tardinha vinha caindo; a afta veio a formar-se depois que feri a gengiva; e se ele vier a procurá-la de novo?; Laura vinha exatamente de se desfazer daquelas roupas [...].»

Esta construção permite, por conseguinte, exprimir uma ação recém-terminada, construindo-a me...

Pergunta:

Como ordeno alfabeticamente as palavras avó e avô?

Resposta:

Não foi aqui possível identificar regra para esclarecer a questão, e o presente parecer baseia-se na consulta de vários dicionários.

A consulta de vários dicionários permite observar que atualmente se tende a colocar a forma com acento agudo – avó – antes da forma com acento circunflexo – avô (cf. Dicionário Houaiss e dicionário impresso da Academia das Ciências de Lisboa). Dicionários mais antigos apresentam avô antes de avó, talvez porque se dava prioridade às formas do género masculino (cf. Morais, 10.ª edição e dicionário de Cândido de Figueiredo).

Pergunta:

Qual a significação da palavra aceiro na designação de ruas?

Na Margem Sul [na região de Lisboa], já encontrei exemplos do referido uso da palavra: veja-se «Aceiro Francisco Silvestre», nos arredores de Pinhal Novo. Quer dizer que houve lá uma clareira?

Obrigado.

Resposta:

Aceiro pode ter vários significados, mas, quando convertido em topónimo, o mais plausível é que essa conversão tenha origem no uso da palavra na aceção de «faixa de terreno limpa de vegetação que atravessa ou rodeia propriedades, pinhais, campos cultivados, matas espessas, para evitar a propagação de incêndios e facilitar as comunicações» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).

Como termo usado na denominação de arruamentos, é possível apurar que há uma particular concentração de usos toponímicos de aceiro na freguesia de Pinhal Novo1, no concelho de Palmela, havendo também ocorrências um pouco mais a norte, no concelho de Montijo. Para elaboração desta resposta, não se encontrou explicação cabal para este facto, mas é possível que aceiro se tenha fixado na toponímia de Pinhal Novo como reflexo de uma antiga situação, em que a região tinha exploração florestal ou agrícola.

1 O uso mais tradicional parece incluir o artigo definido: «moro no Pinhal Novo». No entanto, em situações e denominações formais, o topónimo ocore sem artigo definido: «Junta de Freguesia de Pinhal Novo». Consultar a resposta "O topónimo Pinhal Novo e o uso de artigo definido" (20/05/2013), do consultor Rúben Correia.

Pergunta:

Gostaria de saber se o advérbio insinuadamente existe ou se é apenas um regionalismo ou uma forma coloquial de dizer «de forma insinuada». Consultei alguns dicionários, porém, não o encontro. No motor de busca do Google, remetem-me para insidiosamente...

Agradeço desde já a vossa resposta e aproveito para vos dar os parabéns pelo vosso árduo trabalho.

Resposta:

É um advérbio possível e bem formado, que tem uso tanto em Portugal como no Brasil, como se pode confirmar por uma pesquisa Google. Não é propriamente sinónimo de insidiosamente, porque este advérbio de modo relaciona-se com insidioso, sinónimo de enganador e traiçoeiro.

Saliente-se que os advérbios acabados em -mente, como se formam geralmente de forma muito intuitiva, nem sempre aparecem registados exaustivamente nos dicionários. É também este o caso de insinuadamente, que significa «de modo insinuado» e deriva de insinuada, forma de particípio passado do verbo insinuar, «sugerir subtilmente» e «captar simpatia junto de alguém» (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa e Dicionário Houaiss).

Note-se, porém, que mais corrente são o adjetivo insinuante e insinuantemente, os quais não são exatamente sinónimos de insinuado/insinuada e de insinuadamente. Com efeito, insinuante é sinónimo de cativante, sedutor, atraente, e, portanto, insinuantemente significa «de forma insinuante, cativante, sedutora». Registam-se ainda os adjetivos insinuativo e insinuoso, sinónimos de insinuante, embora se prestem a defin...

Pergunta:

No contexto da Inteligência Artificial, deve dizer-se "redes neurais artificiais" ou "redes neuronais artificiais"?

Obrigada.

Resposta:

Em Portugal, prefere-se «rede neuronal artifical», incluindo «rede neuronal» (ver neuronal no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa ). Contudo, em trabalhos científicos do Brasil, ocorre «rede neural artificial».

Muito provavelmente por causa do impacto demográfico do Brasil, a expressão construída com neural parece muito mais frequente do que «rede neuronal artificial». Note-se, mesmo assim, que, para o contexto de Portugal, a tradução consagrada o inglês «artificial neural network» é «rede neuronal artificial» (cf. Infopédia).