Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Na carta de Pero Vaz de Caminha a D. Manuel, segundo parece, lê-se o seguinte:

«A feição (dos índios do Brasil) é serem pardos, um tanto avermelhados [...]. Os cabelos deles são corredios […]. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarela […] mui basta e mui cerrada que lhe cobria o toutiço e as orelhas.»

Qual o significado de solapa?

Resposta:

O significado que Pero Vaz de Caminha (1450-1500) dá a solapa não é claro, mas parece tratar-se de um uso especial da palavra, aplicado a uma parte do corte de cabelo dos nativos que o autor descreve.

O historiador Jaime Cortesão, na sua edição do texto de Caminha, a Carta do Achamento do Brasil, sustenta o seguinte1:

«[...] A solapa tem que ser qualquer coisa alheia ao crânio, propriamente dito, mas ligada a ele; e outra não pode ser que uma parte da cabeleira natural. (...) supomos que a solapa era a parte do cabelo que caía sobre a testa e sobre a parte restante do crânio rapada, que lhe ficava por debaixo. Esta maneira de cortar o cabelo era usada no século XV, tanto por seculares como religiosos. [...] Em resumo: o mancebo tupiniquim descrito por Caminha, tinha o cabelo rapado por cima das orelhas, e, recobrindo a parte depilada, curtas madeixas, sob cuja parte inferior, trazia colada, de fonte a fonte e caída para trás, uma cabeleira de penas, que lhe tapava as orelhas e o crânio.»

Por outras palavras, solapa, que geralmente significa «aba de casaco, capa», significava algo um pouco diferente na Carta, ainda que mantendo a noção de «capa»: «madeixa que cai sobre uma parte rapada do crânio, escondendo-a».

 

1 Citações recolhidas numa página intitulada Notas, na plataforma Angelfire.

Pergunta:

Gostaria de saber informações históricas e linguisticas mais detalhadas sobre a etimologia da palavra melancia.

Até o momento encontrei as seguintes informações:

«Do árabe balansia, "valenciana", pelo português antigo balancia e belancia [= melancia], por influência de melão.»

«ETIM(1609) balancia, belancia (f. arcaica ainda us.), prov. termo africano ou do árabe, com infl. de melão.»,

«Etymology. Alteration of balancia (“watermelon”), influenced by melão (“melon”), from Arabic بَلَنْسِيّ (balansiyy, “Valencian”).»*

Qual seria exatamente a relação de melancia com valenciana/valencian? Teria alguma relação com o dialeto árabe de Valência?

Agradeço desde já.

 

[* N. E. – Informação do Wiktionary. Tradução: «Etimologia. Alteração de balancia (“melancia”), influenciada por melão, do arábico بَلَنْسِيّ (balansiyy, “valenciano”).»]

Resposta:

A informação recolhida pela consulente encontra-se de facto na Infopédia, no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa e, associada a informação sobre o árabe, surge também no Wiktionary. Trata-se de uma etimologia plausível e aceite, mas que ainda deixa muitas dúvidas, que não se encontram por enquanto esclarecidas.

A incerteza sobre a etimologia melancia é manifesta, por exemplo, no comentário que o destacado arabista espanhol Federico Corriente (1940-2020) dedicou à palavra em Diccionario de Arabismos y Voces Afines en Iberorromance (Madrid, Editorial Gredos, 2003):

«melancia (portugués, con la variante balancia) "especie de sandía de origen indio"; a pesar de estar documentada sólo a partir del siglo XVI y de su origen oriental, podería derivar del gentilicio andalusi balansiyyah "valenciana" [...] si tal variedad apareciera mencionada, lo que no parece hasta ahora ser el caso. Tal vez se trate de etimologías populares del andalusí mallísi, corrupción del [árabe] clássico imlīsī "de piel lisa", término botánico y de horticultura muy común» [tradução livre: «melancia (português, com a variante balancia) "espécie de melancia de origem indiana"; apesar de documentada apenas a partir do século XVI e da sua origem oriental, poderia derivar do gentílico andalusi balansiyyah "valenciana" [...] se tal variedade fosse mencionada, o que até agora não parece ser o...

Pergunta:

Se no inglês se pode empregar a palavra unchemical para «não químico», porque é que no português não temos algo do mesmo género, como por exemplo "aquímico"?

Resposta:

Não é impossível "aquímico", porque as regras e os elementos envolvidos na formação de palavras em português permitem criar o vocábulo. O que sucede é que, pelo menos, a avaliar por pesquisas na Internet, o termo se usa muito pouco.

Em português, o prefixo a-, que marca negação, não corresponde exatamente ao inglês un-, também associado a negação. Por exemplo: undressed – «despido, em roupa informal»; unlock – «abrir, desaferrolhar»; un-English – «impróprio do que é ou se espera ser inglês».

Nos exemplos anteriores, não é possível recorrer a derivados com a-, ou porque já existem palavras portuguesas com uso estável, formadas com outro tipo de prefixo (des-, em despido ou desaferrolhar), ou porque se representa a situação com um verbo que não integra a negação (abrir), ou, ainda, porque é necessário recorrer a uma perífrase (ou seja, a uma expressão).

Conclui-se, portanto, que é frequente na tradução nem sempre manter a simetria morfológica e lexical interlinguística, porque o mapeamento entre conceitos ou noções, por um lado, e o léxico, por outro, são diferentes de língua para língua.

Pergunta:

De onde surgiu a expressão "favas contadas"?

É verdadeira a explicação de que tem a ver com eleições feitas usando-se favas para contar os votos?

Resposta:

Não é seguro que a expressão tenha origem no uso referido na consulta, mas essa é, na verdade, uma das explicações.

Por exemplo, Orlando Neves (1935-2005), no seu Dicionário de Expressões Correntes (2.ª edição), regista o seguinte comentário:

«Favas contadas – Coisa certa, segura. Na Grécia, em tempos de Plutarco, nas eleições políticas os votos eram dados por meio de favas, as quais, depois de contadas, indicavam os vencedores

É possível que as favas fossem utilizadas na contagem em geral, como se propõe na explicação da expressão espanhola correspondente, «habas contadas», ainda que esta não tenha o mesmo significado que em português, porque se refere a situações de grande escassez1:

«SON HABAS CONTADAS. Se aplica esta expresión a las cosas que son número fijo y, por lo general, escaso. En la antigüedad era costumbre hacer las cuentas domésticas con alubias, así como fiar a estas, en su doble calidad de blancas y negras, las pruebas de suerte mediante su extracción» [tradução livre: «SÃO FAVAS (FEIJÕES) CONTADAS. Aplica-se esta expressão às coisas em número fixo e geralmente escasso. Na antiguidade era costume fazer as contas domésticas com feijões ou utilizar duas qualidades deles, branca e negra, para tirar alguma coisa à sorte.]

Acresce que, em espanhol, haba pode ser palavra entendida como o mesmo que um tipo de feijão (cf. dicionário da Real Academia Espanhola). Refira-se também que, em Espanha, nas regiões de língua asturiana, faba designa um tipo de feijão (

Pergunta:

Sei que em língua portuguesa encontra-se o substantivo felonia, derivado do francês félonie.

Atesta-se alguma forma adjetiva em português, que corresponda a félon em francês?

Encontrei num sítio chamado Enciclopedia.Inc a palavra "felônio", cujo significado é correspondente a félon: «que se refere a um indivíduo que pratica atos criminosos, um criminoso ou delinquente.»

Mas, não sei se é uma fonte confiável, e gostaria de contar com seu juízo a respeito.

Agradeço antecipadamente pela sua colaboração e orientação sobre o assunto.

Resposta:

No português contemporâneo regista-se felonia, como substantivo, mas os dicionários não acolhem o adjetivo e substantivo correspondentes, que teoricamente será "felão".

Contudo, no português medieval, ocorre a forma felon (ou felom), que significa «irado, revoltado, cruel», conforme se atesta no glossário do portal Cantigas Trovadorescas Galego-Portuguesas. Regista-se igualmente felon, que vem do francês félon, no Dicionário da Língua Portuguesa Medieval.

Da forma felon, pode deduzir-se "felão", visto que a maior parte das palavras acabadas em -om no português medieval passaram esta terminação a "-ão" aproximadamente a partir do século XV; p. ex. patrom> patrão; coração>coração.

Não se encontrou registo de "felònio" em fontes dicionarísticas estáveis e reconhecidas como fiáveis.