Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Vi na televisão a seguinte frase numa legenda, que julgo ser incorrecta[*]: «Não vamos ir».

Agradecia um comentário, perante a atitude de um colega que a defendeu e não aceitou os meus argumentos.

Desde já grato.

 

[* N. E. – O consulente adota a norma ortográfica de 1945.]

Resposta:

Do ponto de vista do padrão correto do português, evita-se, como já antes dissemos no Ciberdúvidas (ver Textos Relacionados, infra) o encontro do auxiliar ir com ir usado como verbo pleno. O caso da legenda constitui, portanto, um erro no quadro da norma de Portugal ou na de outros países de língua portuguesa.

Contudo, em vários falares regionais, por exemplo, nos da Madeira, registam-se as formas «vou ir» ou «vamos ir» (sublinhado nosso):

(1) «[...] [E]ncontramos buxo encostado ou buxo voltado, “Entorse na barriga provocado por queda, o que é vulgar em crianças e adultos. – Eu acho, vezenha qu`o piqueno `tá c`o buxo encostado. Vou ir a casa duma milher intendida.”» (Maria Florentina Silva Santos, À luz das Palavras quase Esquecidas, Universidade da Madeira, p. 72).

(2) «"Eu penso que vamos ir a uma coisa paradoxal: o volume, o custo, igual ao que é o orçamento anual da Região Autónoma"» [declarações de Alberto João Jardim, antigo presidente do Governo Regional da Madeira (1978-2015) ao programa Grande Reportagem, citado por Helder Guégués, Assim Mesmo, 26/02/2010].

É verdade que nas legendas se devem evitar padrões regionais, recomendando-se a adoção de uma língua mais neutra. No entanto, é possível que a tradução reflita alguma precipitação, talvez a verter em português a construção inglesa «we are...

Pergunta:

Leio nos jornais impressos, vez por outra, o emprego da palavra cirurgiado.

Estaria correto o uso desse neologismo ou seria condenável a utilização dessa palavra, perante a norma culta da língua portuguesa?

Obrigado.

Resposta:

No lugar de operado e «submetido a cirurgia/intervenção cirúrgica»,  cirurgiado é termo que, embora circule no uso, não se recomenda por enquanto.

Assinale-se que o verbo cirurgiar, de que cirurgiado é o particípio passado, não é novidade, pois já encontra registo em dicionários menos recentes, como seja o Dicionário de Caldas Aulete, que o consigna como como termo jocoso no sentido de «fazer de cirurgião».

Pergunta:

Qual é o presente do conjuntivo do verbo eclodir?

Resposta:

Para vários autores, eclodir, «tornar-se visível subitamente; surgir» (Dicionário Hoauiss), é um verbo defetivo, que só se conjuga nas formas cujo acento tónico se coloca depois do radical (formas arrizotónicas; cf. Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa, 1966). Nesta perspetiva, o verbo eclodir só terá, no presente do conjuntivo, as seguintes formas: eclodamos e eclodais. Contudo, noutras fontes, encontra-se este mesmo verbo completamente conjugado. É o caso do dicionário da Infopédia (Porto Editora) e do Dicionário Houaiss: ecloda, eclodas, ecloda, eclodamos, eclodais, eclodam.

Uma consulta do Corpus do Português (de Mark Davies) permite observar que as formas flexionadas mais frequentes são as da 3.ª pessoa do singular e do plural, recebam elas o acento tónico no radical (eclod-) ou na terminação: eclodiu (24 ocorrências), eclodem (17), eclode (12), eclodiram ( 10). Frequente é também o infinitivo eclodir (22). Sendo assim, a ideia de este verbo ser defetivo não terá tanto que ver com a colocação do acento, mas mais com as condições de ocorrência das referidas formas, que se associam a nomes que denotam eventos súbitos (guerra, revolução, revolta ou até ovo, em alusão à c...

Pergunta:

Questiono como se escreve atualmente «mestre florestal», com ou sem hífen?

Resposta:

Não é obrigatório escrever «mestre florestal» com hífen. Na verdade, até se pode considerar dispensável a hifenização deste caso.

O termo «mestre florestal» é usado como denominação de uma das etapas da carreira de guarda florestal (cf. "CPF - Corpo de Polícia Florestal", Secretaria Regional de Ambiente, Recursos Naturais e Alterações Climáticas, Região Autónoma da Madeira).

As fontes aqui consultadas1 não indicam que haja tradição de registo da expressão «mestre florestal» como palavra composta e significado próprio (não simples resultado da associação dos significados das duas palavras). Trata-se, portanto, de uma expressão formada por nome seguida de adjetivo e confundível com qualquer grupo nominal ocasional.

Mas, ainda que se possa aceitar que «mestre florestal» constitui globalmente uma palavra, não há regra ortográfica que imponha o uso do hífen. Como tem sido apontado em respostas anteriores, a hifenização dos compostos de nome e adjetivo depende muito da tradição do seu registo lexicográfico, muitas em decorrência do uso da expressão como forma designar, por exemplo, um cargo ou função especial: secretário-geral, diretor-adjunto. Mas outros casos há em que não se usa hífen, mesmo que o composto tenha certa estabilidade de uso e algum grau de semântica própria autónoma, como é o caso de cargos que envolva o adjetivo executivo: coordenador executivo.

Deste modo, por não evidenciar hifenização previsível ou de prática consistente, a forma «mestre florestal» está correta.

 

1 Foram consultados:

Pergunta:

Estava a assistir a um vídeo na rede sobre o dialeto de Açores e vi que eles, assim como o Brasil, cortam o erre do infinitivo, ou seja, eles falam "amá(r)", "comê(r)", "ri(r)".

O que me fez perguntar o quanto parecido de Portugal o Brasil é.

Lembrei de outras questões, como por exemplo alguns brasileiros usarem o pronome pessoal de caso reto ele como se fosse de caso oblíquo.

Daí a pergunta: qual dialeto de Portugal se assemelha mais ao português do Brasil?

Resposta:

Não parece haver um dialeto de Portugal que, globalmente, se confunda com alguma modalidade de português do Brasil.

Contudo, isoladamente, há características do português do Brasil que estão dispersas pelos dialetos de Portugal, o que se verifica sobretudo quando se estudam os dialetos do sul de Portugal e, mais raramente, alguns falares das ilhas (que, no entanto, foneticamente são muito diferentes). Um dos traços partilhados com o português do Brasil é o uso do gerúndio, que é bastante corrente na construção progressiva: «estou escrevendo» (em vez de «estou a escrever», como é típico da língua padrão de Portugal).

Relativamente à supressão do -r em final de palavra (amar > "amá"), importa registar a descrição disponível na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020). Assim, no capítulo dedicado ao português do Brasil, a autora, Rosa Virgínia Mattos e Silva, observa que, a par de pronúncias alternativas, a consoante vibrante [ɾ] «geralmente não é produzida, em final de palavra, sobretudo no infinitivo dos verbos (cf. amar, pronunciado am[a]». Mattos e Silva assinala em nota que este fenómeno ocorre «em algumas variedades do português europeu», afirmação que encontra apoio na mesma obra, páginas antes (p. 115), onde se diz que «a supressão da consoante vibrante em final de palavra, seguida de pausa» é um «traço da quase totalidade dos dialetos açorianos»; e acrescenta-se a seguinte observação:

«Em alguns dialetos [açorianos], o fenómeno é de tal maneira frequente e relevante que pode ter implicações ao nível da formação do plural das palavras, podendo este ser realizado como se a palavra terminasse por vogal, como [ɐlɐ