Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Estava a assistir a um vídeo na rede sobre o dialeto de Açores e vi que eles, assim como o Brasil, cortam o erre do infinitivo, ou seja, eles falam "amá(r)", "comê(r)", "ri(r)".

O que me fez perguntar o quanto parecido de Portugal o Brasil é.

Lembrei de outras questões, como por exemplo alguns brasileiros usarem o pronome pessoal de caso reto ele como se fosse de caso oblíquo.

Daí a pergunta: qual dialeto de Portugal se assemelha mais ao português do Brasil?

Resposta:

Não parece haver um dialeto de Portugal que, globalmente, se confunda com alguma modalidade de português do Brasil.

Contudo, isoladamente, há características do português do Brasil que estão dispersas pelos dialetos de Portugal, o que se verifica sobretudo quando se estudam os dialetos do sul de Portugal e, mais raramente, alguns falares das ilhas (que, no entanto, foneticamente são muito diferentes). Um dos traços partilhados com o português do Brasil é o uso do gerúndio, que é bastante corrente na construção progressiva: «estou escrevendo» (em vez de «estou a escrever», como é típico da língua padrão de Portugal).

Relativamente à supressão do -r em final de palavra (amar > "amá"), importa registar a descrição disponível na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020). Assim, no capítulo dedicado ao português do Brasil, a autora, Rosa Virgínia Mattos e Silva, observa que, a par de pronúncias alternativas, a consoante vibrante [ɾ] «geralmente não é produzida, em final de palavra, sobretudo no infinitivo dos verbos (cf. amar, pronunciado am[a]». Mattos e Silva assinala em nota que este fenómeno ocorre «em algumas variedades do português europeu», afirmação que encontra apoio na mesma obra, páginas antes (p. 115), onde se diz que «a supressão da consoante vibrante em final de palavra, seguida de pausa» é um «traço da quase totalidade dos dialetos açorianos»; e acrescenta-se a seguinte observação:

«Em alguns dialetos [açorianos], o fenómeno é de tal maneira frequente e relevante que pode ter implicações ao nível da formação do plural das palavras, podendo este ser realizado como se a palavra terminasse por vogal, como [ɐlɐ

Pergunta:

A forma lengalenga provém da forma antiga popular "lenga", que deu língua?

Muito obrigado!

Resposta:

Não há notícia de que língua venha diretamente de uma suposta forma "lenga" ou mesmo "lengua" (igual à forma castelhana lengua).

É verdade que o Dicionário Houaiss (1.ª edição, 2001), em nota etimológica à entrada língua, assinala que, revelando «fonetismo semiculto, o português língua conviveu com as variantes antigas lengua e lenga, nos s. XIII e XIV», mas tal não significa que essas variantes tenham antecedido a forma que é a do português contemporâneo. O que os textos medievais evidenciam é a concorrência das formas lingua/lingoa com as formas lengua/lengoa, sendo estas últimas registadas em textos galegos (cf. Dicionario de Dicionarios do Galego Medieval).

Sendo assim, também não é certo que lengalenga tenha que ver com uma forma antiga. Baseando-se na opinião de José Pedro Machado, o Dicionário Houaiss considera, na referida nota etimológica a este vocábulo, que a sua origem é expressiva. Note-se, porém, que não é impossível que a palavra constitua historicamente um empréstimo, por exemplo, do occitano, onde língua é lenga. Mas trata-se de simples conjetura, uma vez que, para elaboração desta resposta, não foi possível achar estudos (fiáveis) que apoiem tal hipótese.

Pergunta:

Na oralidade é comum usar o artigo no plural antes do nome de grupos musicais de rock, pop e outros estilos populares urbanos. Dizemos «os Deolinda», «os Xutos e Pontapés», «os GNR», «os Queen» ou «os U2», por exemplo, em referência àqueles grupos musicais.

Todavia não dizemos "os Orquestra Gulbenkian" ou "os Banda Sinfónica Portuguesa" ou "os quinteto de Mário Laginha" (esta seria muito má...) ou "os Rancho Folclórico do Cartaxo" (não sei se existe) ou "os Tuna Universitária de Aveiro".

Porque é que isto acontece? Penso que num texto escrito não é admissível usar as primeiras formulações, ou é?

Resposta:

Examinando o corpus que o consulente reuniu, ver-se-á que no primeiro caso há apenas o nome próprio do grupo*, enquanto na segunda série há sempre um nome classificador – orquestra, banda, quinteto, rancho e tuna – antes do nome individualizador, situação que obriga a que o artigo concorde com essa primeira expressão.

A segunda série de exemplos incluída na pergunta corresponde a casos de nomes próprios de base descritiva, que são muito frequentes também na denominação de «instituições, organizações, monumentos, marcas, eventos, e também [...] lugares, incluindo ruas, avenidas e entidades geográficas naturais, como rios, lagos e montanhas», como se escreve na Gramática do Português (Fundação C. Gulbenkian, 2013-202, p. 1002), onde se acrescenta: «São exemplos, Museu Nacional de Arte Antiga, Casa Branca, Academia Militar, Museu do Louvre, Torre Eiffel, Mar de Azov, Lago Léman, Avenida da Liberdade, [...] Rio da Prata

* N....

Pergunta:

Gostaria de saber se a palavra apaludado – usada por exemplo na expressão «zonas apaludadas», como sinónimo de «zonas palustres» – se encontra dicionarizada.

Já li esta palavra em mais de uma ocasião, mas não a consigo encontrar em nenhum dicionário.

Obrigado.

Resposta:

A forma apaludado está correta como variante de apaulado (de paul) e sinónimo de palustre, pantanoso ou lodoso.

Refira-se que tem registo em alguns dicionários, por exemplo, no Dicionário de Caldas Aulete. Encontra-se também em vocabulários ortográficos: por exemplo, no Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), de Rebelo Gonçalves; e no Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa, do Instituto Internacional da Língua Portuguesa.

Pergunta:

Qual a origem e qual o significado das expressões idiomáticas «não poder com uma gata pelo rabo» e «bicho de sete cabeças».

Resposta:

Sobre a origem histórica, factual, das expressões em questão, é praticamente impossível dar informação, uma vez que as expressões idiomáticas, tal como os provérbios, são geralmente produto de criações anónimas que se generalizam no uso e se fixam na língua.

No entanto, a respeito de «bicho de sete cabeças», é possível falar da motivação cultural da expressão, como faz Orlando Neves, em Dicionário de Expressões Correntes (Editorial Notícias, 2000, p. p. 80):

«[a expressão] refere-se a grande dificuldade, grande problema cuja solução é problemática e custosa. Trata-se do designativo popular da "hidra de Lerna", o monstro que Hércules matou. Dragão ou serpente, vivia nos pântanos de Lerna, tinha sete cabeças que renasciam quando cortadas, enquanto não fossem decepadas de um só golpe. Esse foi um dos trabalhos de Hércules, que assim libertou Argélida do flagelo. Uma variante da história de Hércules existe no conto tradicional português A Bicha de Sete Cabeças, onde o filho de um sapateiro, amigo do príncipe real, mata tal monstro na noite de núpcias do herdeiro do trono. Só ele sabia da maldição que caía sobre a princesa. Obrigado a revelar esse segredo para não ser castigado pelo príncipe, ficou transformado em estátua de mármore nos jardins do palácio real.»

Quanto aos significados:

– «Não poder com uma gata pelo rabo» = «Estar exausto, sem força física» (cf. «não poder com um gato pelo rabo», in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, consultado em 21-11-2021]

– «(fazer/armar) um bicho de sete cabeças»: «(encontrar) grande dificuldade, em regra,...