Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Estava a assistir à reportagem da TVI sobre um eclipse solar híbrido na região Ásia-Pacífico e quando um espectador começou a comentar apareceu:

«Foi difícil convencê-los ao início, porque disse-lhes que ia durar só um segundo.»

Não devia ser «porque lhes disse»? Será só um erro? O pronome não devia estar atrás do verbo?

Gostaria de saber se essa frase está correta ou não.

Obrigado.

Resposta:

O pronome deveria ser colocado antes do verbo.

Com orações subordinadas finitas, o pronome clítico coloca-se normalmente antes do verbo (em posição proclítica). Considera-se, assim, que as conjunções ou as locuções conjuncionais que introduzem a oração subordinada atraem a próclise. Isto acontece com orações subordinadas temporais, causais, concessivas, finais ou condicionais. Nos exemplos abaixo, apresentamos o atractor de próclise a negrito e o pronome átono sublinhado:

(1) «O João percebeu tudo quando lhe telefonou.»

(2) «O João percebeu tudo porque lhe telefonou.»

(3) «O João ficou tão triste que lhe telefonou.»

(4) «O João saiu para lhe telefonar.»

(5) «Se ele lhe telefonou, ficou a saber a verdade.»

Pelo que ficou dito atrás, na frase apresentada pelo consulente, o pronome deve ser colocado em posição proclítica:

(6) «Foi difícil convencê-los ao início, porque lhes disse que ia durar só um segundo.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Gostaria de saber se há algum problema gramatical com a seguinte frase:

«Ela corre veloz.»

Porque normalmente falamos: «Ela corre rápido.»

Ou o ideal devia ser «Ela corre velozmente»?

Resposta:

A opção mais elegante será a construção «corre velozmente». Esta opção deve-se ao facto de a classe do verbo se compatibilizar com a do advérbio, que incide sobre aquele modificando-o. Neste caso, o advérbio velozmente incide sobre correr, expressando um valor de modo.

Não obstante, uma pesquisa no Corpus do Português, de Mark Davies, mostra-nos que a construção «corre veloz» também tem registos de uso, particularmente no português do Brasil. Este facto justifica-se pela possibilidade de uma utilização do adjetivo veloz com leitura adverbial. Esta será, todavia, uma opção menos cuidada e, portanto, mais aceitável em contexto de menor formalidade.

Disponha sempre!

Pergunta:

Ao utilizar «de que» numa frase mais do que uma vez, é necessário repetir sempre esta combinação? Deixo alguns exemplos abaixo:

– a) «Certifique-se de que o motor liga e de que a luz acende», ou b) «Certifique-se de que o motor liga e que a luz acende»;

– a) «Certifique-se de que o dispositivo está instalado, de que não está danificado e de que funciona corretamente», ou b) «Certifique-se de que o dispositivo está instalado, que não está danificado e que funciona corretamente.»

Agradeço, desde já, a atenção dispensada.

Resposta:

Relativamente à questão apresentada, há três possibilidades a considerar.

Uma delas, a mais formal, é a se manter, nas estruturas coordenadas a preposição e a conjunção, como se exemplifica em (1):

(1) «Certifique-se de que o motor liga e de que a luz acende.»

Outra possibilidade será a de omitir a preposição regida pelo verbo. Esta é uma opção que tem lugar em contextos mais informais ou em situações de oralidade. Trata-se de uma possibilidade que advém do facto de a preposição de ter uma semântica pouco evidente, sendo a sua função sobretudo gramatical. Assim, é possível, nos contextos referidos, a frase apresentada em (2):

(2) «Certifique-se que o motor liga e que a luz acende.»

Uma outra opção será aquela em que na coordenação se omitem preposição e conjunção, como em (3):

(3) «Certifique-se de que o motor liga e a luz acende.»

Já a opção por eliminar apenas a preposição traz desequilíbrio à frase, pelo que, pelo menos num registo cuidado, não é aceitável:

(4) «Certifique-se de que o motor liga e que a luz acende.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Qual a diferença entre «cooperação amigável» e «cooperação amistosa»?

Muito obrigado.

Resposta:

É difícil estabelecer uma fronteira entre as duas expressões, dado que elas são usadas como equivalentes. Este facto deve-se à sinonímia existente entre amigável e amistoso.

Amigável significa «que é próprio dos que se querem bem, dos amigos; que se processa de forma afetuosa, com amizade; que não envolve conflito; que é feito ou se resolve a bem, que é de comum acordo; de fácil utilização; que é intuitivo» (Dicionário da Língua Portuguesa). Já amistoso é usado com os seguintes sentidos: «que é próprio de amigo, que demonstra amizade; que se apresenta ou revela agradável». Tanto um adjetivo como outro se combinam com diferentes nomes com um efeito semelhante, como se verifica em «jogo amigável / amistoso»; «conversa amigável / amistosa» (Dicionário da Língua Portuguesa). O mesmo se verifica relativamente às expressões apresentadas pelo consulente «cooperação amigável/ amistosa», que são comummente usadas nos mesmos contextos e com sentidos equivalentes:

(1) «Pequim e Riade “mantêm cooperação amigável em todas as áreas”» (Expresso)

(2) «Acabou-se a união, começa a “cooperação amistosa”» (Expresso)

Disponha sempre!

Pergunta:

Em vista das regras da crase e da sinalefa, acerca das quais tenho lido alguns artigos no Ciberdúvidas, sem no entanto ter percebido quais os limites para a aplicação das mesmas, gostaria de saber como se divide as sílabas métricas do seguinte hipotético verso:

Ou a aia ia ou ia eu aí.

Muito obrigado.

Resposta:

De acordo com as noções de versificação apresentadas por Cunha e Cintra, estamos perante um caso de sinalefa quando uma vogal «perde[r] a sua autonomia sintática e torna-se uma semivogal, que passa a formar ditongo com a vogal seguinte»1. Já a crase corresponde à «fusão de duas vogais idênticas numa só»2. Para além destes dois fenómenos de contração, consideramos ainda a elisão, por meio da qual «a primeira vogal pode desaparecer na pronúncia diante de uma vogal de natureza diversa»3.

No caso apresentado, uma das possibilidades é a de existência de sinalefa na segunda sílaba métrica, uma vez que esta sílaba pode ser pronunciada como um ditongo (“owa”):

(1) «O/u a/ ai/a/ i/a/ ou/ i/a/ eu/ a/í/»

Este verso teria, assim, 12 sílabas métricas.

Disponha sempre!

 

1. Cunha e Cintra, Nova gramática do português contemporâneo. Ed. Sá da Costa, p. 667.

2. Idem, ibid., p. 672

3. Idem, ibid., p. 668.