Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
124K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Preciso de ajuda com a construção «muito pouco».

É anómala a estrutura adverbial «muito pouco» para marcar o superlativo absoluto analítico de pouco, ou este apenas possuí a forma sintética pouquíssimo?

Exemplos:

1. Ele tinha muito pouco tempo.

2. Ele tinha pouquíssimo tempo.

Obrigado!

Resposta:

A palavra pouco expressa um valor de quantificação. Ao acompanhar um nome, integra a classe dos quantificadores existenciais (1), ao incidir sobre um adjetivo (2) ou sobre um verbo (3) pertence à classe dos advérbios:

(1) «Ele tinha pouco tempo.»

(2) «Ele é pouco interessado.»

(3) «Ele trabalha pouco.»

Refira-se que nas frases apresentadas pelo consulente, pouco não é um advérbio, mas um quantificador (ou noutra perspetiva gramatical, um determinante indefinido), uma vez que incide sobre um nome.

Nas frases (1) e (3), pouco é graduável, podendo surgir tanto com a forma de superlativo sintético (pouquíssimo) como de superlativo analítico («muito pouco»):

(1a) «Ele tinha muito pouco / pouquíssimo tempo.»

(3a) «Ele trabalha muito pouco / pouquíssimo.»

Quando pouco incide sobre um adjetivo, a opção pelo superlativo sintético parece ser menos aceitável, sendo preferível a opção pelo superlativo analítico:

(2) «Ele é muito pouco interessado.»

Disponha sempre!

Apesar do <i>vs.</i> Apesar de o
Casos de contração da preposição com o artigo

A identificação da frase correta no par «Apesar de o dia estar lindo, não sairia de casa.» ou «Apesar do dia estar lindo, não sairia de casa.» constitui a matéria do apontamento da professora Carla Marques (programa Páginas de Português, na Antena 2, em 16 de abril de 2023). 

O léxico da denúncia
Significados e cambiantes semânticas de âmbito sexual ou moral

As palavras e termos usados no contexto da denúncia de situações indesejadas no âmbito das relações humanas, num momento em que em Portugal as acusações de assédio sobem de tom, dá o mote para o apontamento da professora Carla Marques.

Pergunta:

Qual é o mais correto nos seguintes exemplos?

a) trajado com um fato avermelhado.

b) trajado de um fato avermelhado.

Resposta:

Ambas as construções são aceitáveis, embora correspondam a realidades sintático-semânticas distintas.

O adjetivo trajado pode construir-se com um complemento introduzido pela preposição de. Este complemento está, muito frequentemente, relacionado com a indicação de cor:

(1) «Ele chegou trajado de vermelho.»

Nesta ótica, a construção apresentada pelo consulente é correta, sendo mais natural sem a utilização do determinante artigo indefinido um:

(2) «trajado de (um) fato avermelhado»

Não obstante, o adjetivo trajado também pode ser acompanhado por um constituinte que é seu modificador, o que significa que este poderá ser eliminado da frase, pois não é pedido pelo adjetivo:

(3) «Ele chegou trajado com fato a rigor.»

Nesta frase, o constituinte «com fato a rigor» modifica o adjetivo trajado contribuindo para restringir a sua significação. No entanto, pode ser omitido da frase:

(4) «Ele chegou trajado.»

O constituinte «com um fato avermelhado», na frase (5) poderá ser usado com uma função equivalente à que se descreveu:

(5) «trajado com fato avermelhado»

Neste expressão, a informação central é a de que alguém está vestido (= trajado), contribuindo o constituinte «com um fato avermelhado» para exprimir uma informação acessória.

Note-se, no entanto, que, em termos semânticos, a diferença entre as construções (1) e (5) é, na prática, mínima.

Disponha sempre!

Pergunta:

«E também» é pleonasmo?

Obrigado.

Resposta:

A combinação da conjunção e com o advérbio também não corresponde a um pleonasmo. Não obstante, as palavras partilham alguns valores.

A conjunção e pode ter um valor aditivo, assinalado que o segundo elemento se soma ao(s) elemento(s) anterior(es). Esta conjunção tem a capacidade de coordenar sintagmas, como em (1), ou orações, como em (2):

(1) «O João e a Rita vão ao cinema.»

(2) «O João comprou os bilhetes e reservou pipocas.»

Já o advérbio também tem um valor aditivo que se associa à função de marcação de um valor inclusivo, ou seja, também incide sobre uma palavra e marca a sua pertença a um dado conjunto:

(3) Também o João adorou aquele filme.

Em (3), o advérbio também associa o João ao grupo daqueles que gostaram do filme.

Quando se conjugam e com também, associam-se os valores de adição à focalização e inclusão num dado grupo, sendo que, neste caso, os grupos estão coordenados pela ação da conjunção e:

(4) «O João comprou os bilhetes e também reservou pipocas.»

Se comparamos a frase (2) com a frase (4), vemos que a diferença entre elas se situa no facto de nesta última se acentuar o valor de focalização associado à segunda oração.

Disponha sempre!