Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual é o mais correto?

a) tinha um cabelo que lhe chegava aos seus ombros.

b) tinha um cabelo na altura dos seus ombros.

Resposta:

Ambas as construções são corretas.

Não obstante, uma pesquisa pela Internet mostra que em português europeu a expressão transcrita em (1) parece preferencial:

(1) «Tinha um cabelo que lhe chegava aos (seus) ombros.»

A par desta construção, é também possível usar frases como as apresentadas em (2) e (3), que, em português europeu, serão sentidas como mais naturais:

(2) «O cabelo dava-lhe pelos ombros.»

(3) «Tinha o cabelo pelos ombros.»

A construção transcrita em (4) aparece associada sobretudo a textos escritos em português do Brasil:

(4) «Tinha um cabelo na altura dos seus ombros.»

Caberá ao consulente selecionar a variante em que pretende escrever o seu texto e ajustar a expressão que lhe parece preferencial.

Disponha sempre!

Até vs. Até a
A inclusão vs. o limite espacial
 «Vou até o mar» ou «Vou até ao mar»? – é o que esclarece a professora Carla Marques num apontamento emtido  no  programa Páginas de Português, na  Antena 2, no dia 9 de abril de 2023.
Complemento de nome vs. modificador do nome
«Encontro de cientistas» e «encontro científico»

Nas expressões «encontro de cientistas» e «encontro científico», qual a função sintática dos constituintes que acompanham o nome? Esta questão é abordada pela professora Carla Marques, na sua rubrica divulgada no programa Páginas de Português, na Antena 2 (em 02/04/2023).

Pergunta:

Gostaria de uma opinião sobre o valor aspetual do segmento destacado:

«Sabe também quão extraordinário será o trabalho desse Poeta, que deverá assumir toda a poesia (portuguesa, europeia e outra) e que, para isso, vai precisar de toda uma galáxia de poetas. Dado não existirem fora dele, acabaria por reduzi-los aos que no seu interior vinham representando o seu singular «drama em gente».

Grata, desde já, pela atenção dispensada.

Resposta:

No segmento destacado, podemos identificar o valor habitual.

Na identificação do valor gramatical veiculado por este segmento poderíamos, eventualmente, hesitar entre os valores habitual e iterativo.  

Como ficou já dito na resposta a perguntas desta mesma natureza, o valor habitual «representa um padrão de repetição da situação suficientemente relevante a ponto de poder ser considerado como uma propriedade característica da entidade representada pelo sujeito gramatical»1, enquanto o aspeto iterativo descreve uma situação «que se obtém quando uma situação é repetida numa porção espácio-temporal delimitada, mas sendo o conjunto dessas repetições perspetivado como um evento único»1.

Neste caso, o segmento «vinham representando o seu singular "drama em gente" é usado para caracterizar alguns heterónimos pessoanos, com um traço que os distingue de outros heterónimos. Não se trata, portanto, de uma situação percecionada como evento único, mas de uma propriedade que é característica destes heterónimos, pelo que o valor que se veicula é o habitual.

Disponha sempre!

 

1.  Cunha in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 586.

Pergunta:

Na frase «inocentou-se aquele réu», a voz é passiva sintética.

A minha dúvida é a seguinte: se essa frase não tem objeto direto, por que o verbo é ainda classificado como transitivo direto nessa voz?

Há algum gramático que dê uma luz sobre isso?

Muito obrigado!

Resposta:

Os verbos transitivos típicos selecionam um argumento interno com o papel temático de paciente, que desempenha a função sintática de complemento direto, e um argumento externo, que tem o papel temático de agente e que desempenha a função sintática de sujeito.

(1) «O juiz inocentou aquele réu.»

Uma das características dos verbos transitivos é o facto de poderem assumir uma forma passiva sintática e, paralelamente a esta, uma passiva de -se. Assim, uma frase passiva sintática (1a) caracteriza-se por o argumento interno passar a ocupar a função de sujeito, ao passo que o argumento externo passa a ter a função de complemento agente da passiva:

(1a) «Aquele réu foi inocentado pelo juiz.» (passiva sintática)

Esta construção é considerada transitiva passiva.

Estes verbos podem também surgir em passivas de -se, nas quais o verbo ocorre sempre na 3.ª pessoa e concorda em número com o argumento interno, que passa a desempenhar a função de sujeito:

(1b) «Inocentou-se aquele réu.» (passiva de -se)

Estas construções têm um traço de indeterminação relativo ao argumento externo, não sendo compatíveis com a presença de complemento agente da passiva. O verbo é considerado transitivo passivo, pois mantém a necessidade de um argumento interno. 

Podemos ainda referir que a construção apresentada em (1b) é ambígua porque pode também ser considerada uma construção de se impessoal, a qual é uma fase ativa marcada por um traço de indeterminação, como em (2):

(2) «Diz-se que o réu foi inocentado.» (= «Alguém diz»)

Assim, a frase (1b) pode ser considerada uma passiva de -se, em que o verbo é transitivo passivo o...