Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

A Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian distingue as orações passivas em verbais, resultativas e estativas, entre outras.

No entanto, os exemplos dados por ela pareceram-me muito acomodatícios deixando de fora muitos outros, ficando eu sem saber julgá-los, pois os critérios apontados na gramática não se coadunam com as caraterísticas deles.

Na página 441, no penúltimo parágrafo, a gramática chega a afirmar a impossibilidade de haver agente da passiva nas orações passivas resultativas
e na página 444 no segundo parágrafo afirma que a passiva estativa não tem componente agentiva.

Por [tais critérios] me parecerem entrar em contradição com a gramática, cheguei até a duvidar da gramaticalidade das frases abaixo (2 e 3), no entanto, qualquer nativo português ou brasileiro a quem perguntei me assegurou da correção delas.

1) A cidade foi infestada pelos ratos.

2) A cidade ficou infestada pelos ratos.

3) A cidade está infestada pelos ratos.

A mim parece-me que "os ratos" [...] são de fato agentes da infestação e podem ser considerados agentes da passiva, ou não?

O que me parece é que depende dos verbos, como poderemos ver nos seguintes exemplos:

  1. A procuração já foi assinada pelo presidente.
  2. A procuração já está assinada pelo presidente.
  3. Finalmente a procuração ficou assinada pelo presidente.

Resposta:

Podemos considerar três tipos de passivas, de acordo com o que se defende na Gramática do Português: as passivas verbais, as passivas resultativas e as passivas estativas.

Antes de mais, é importante considerar as frases passivas verbais típicas, as quais se constroem com verbos transitivos que pedem um complemento direto e têm como argumento externo o sujeito. É o caso da frase ativa apresentada em (1), que se converte na frase passiva em (1a):

(1) «o João comeu um pão.»

(1a) «Um pão foi comido pelo João.»

É desta natureza a frase 1) apresentada pelo consulente, que aqui transcrevemos na forma ativa (2) e passiva (2a):

(2) «Os ratos infestaram a cidade.»

(2a) «A cidade foi infestada pelos ratos.»

Tal como se refere na Gramática do Português, «as orações passivas verbais descrevem tipicamente situações dinâmicas, i.e., em que uma das entidades envolvidas sofre alguma mudança. Por outras palavras, estas orações descrevem tipicamente eventos e não estados»1.

Por essa razão, em geral, os verbos estativos não são compatíveis com a forma passiva. Excetuam-se deste grupo os verbos estativos epistémicos (3) e psicológicos (4), ou seja, os verbos relativos ao conhecimento e os verbos que expressam sentimentos2:

(3) «O João já conhecia esta livro.»

(3a) «Este livro já era conhecido pelo João.»

(4) «O João amava a Rita.»

(4a) «A Rita era amada pelo João.»

Na Gramática do Português apresenta-se um segundo tipo específico de passiva: a passiva resultativa. Este é um caso muito particula...

Pergunta:

Recentemente ouvi algumas pessoas usando a expressão «por óbvio» em vez de obviamente.

Nunca a escutei antes e não a encontrei nos dicionários em que procurei. Gostaria de saber se ela é uma expressão válida.

Grato desde já!

Resposta:

A expressão não é incorreta, mas, no atual momento, parece ter ainda um uso restrito, com registos apenas na variante de português do Brasil.

A expressão «por óbvio» pode ser usada em situações como a que se apresenta em (1):

(1) «Ela tomou aquele desenlace por óbvio.»

Neste caso, afirma-se que o desenlace não trouxe surpresas, i.e., era o esperado.

O advérbio obviamente usa-se como equivalente de claramente (2) ou para responder afirmativamente a uma questão (3):

(2) «Obviamente, ele estava envergonhado.»

(3) « Queres vir connosco?

         Obviamente!»

Pode usar-se igualmente a construção «como é óbvio» como equivalente de obviamente:

(2a) «Como é óbvio, ele estava envergonhado.»

Não identificámos registos de uso da locução «por óbvio» em português europeu. No entanto, por meio de uma pesquisa na internet, encontrámos registos em português do Brasil, ainda que não muito frequentes. Identificámos casos de seu uso em contexto jurídico:

(4) «O magistrado requerente encontra-se lotado na mesma comarca, […]; não foi até aqui promovido à entrância especial porque não requereu e, por óbvio, não há promoção automática.» (in www.cnj.jus.br/InfojurisI2)

Também identificámos este uso em artigos de especialidade:

(5) «Aquelas que foram abandonadas foram espanc...

Pergunta:

Estou perante um documento oficial que em certa altura tem a seguinte frase:

«Acrescentar eventual informação sobre vetustez e/ou patologias das Escolas (...)»

Pelo que sei a palavra patologia é empregue em linguagem médica, e nunca a ouvi em outro contexto que não esse. Estará correta a frase referida?

Obrigada.

Resposta:

A frase está correta.

O termo patologia é, de facto, um termo da medicina que designa um «Desvio em relação ao que é considerado normal do ponto de vista fisiológico e anatómico e que constitui ou caracteriza uma doença» (Dicionário em linha Priberam).

Não obstante, a palavra patologia pode ser usada com um sentido figurado com o valor de «desvio em relação ao que é considerado normal» (idem). É neste sentido que patologia se aplica a diferentes realidades, como se pode verificar por uma pesquisa simples na internet:

(1) «patologias das madeiras»

(2) «patologias das construções»

(3) «patologias da construção civil»

De igual modo, poderá falar-se de «patologia do edifício escolar», como parece ser o caso no excerto de frase apresentado.

 

Disponha sempre!

Pergunta:

Preciso de ajuda com a construção «muito pouco».

É anómala a estrutura adverbial «muito pouco» para marcar o superlativo absoluto analítico de pouco, ou este apenas possuí a forma sintética pouquíssimo?

Exemplos:

1. Ele tinha muito pouco tempo.

2. Ele tinha pouquíssimo tempo.

Obrigado!

Resposta:

A palavra pouco expressa um valor de quantificação. Ao acompanhar um nome, integra a classe dos quantificadores existenciais (1), ao incidir sobre um adjetivo (2) ou sobre um verbo (3) pertence à classe dos advérbios:

(1) «Ele tinha pouco tempo.»

(2) «Ele é pouco interessado.»

(3) «Ele trabalha pouco.»

Refira-se que nas frases apresentadas pelo consulente, pouco não é um advérbio, mas um quantificador (ou noutra perspetiva gramatical, um determinante indefinido), uma vez que incide sobre um nome.

Nas frases (1) e (3), pouco é graduável, podendo surgir tanto com a forma de superlativo sintético (pouquíssimo) como de superlativo analítico («muito pouco»):

(1a) «Ele tinha muito pouco / pouquíssimo tempo.»

(3a) «Ele trabalha muito pouco / pouquíssimo.»

Quando pouco incide sobre um adjetivo, a opção pelo superlativo sintético parece ser menos aceitável, sendo preferível a opção pelo superlativo analítico:

(2) «Ele é muito pouco interessado.»

Disponha sempre!

Apesar do <i>vs.</i> Apesar de o
Casos de contração da preposição com o artigo

A identificação da frase correta no par «Apesar de o dia estar lindo, não sairia de casa.» ou «Apesar do dia estar lindo, não sairia de casa.» constitui a matéria do apontamento da professora Carla Marques (programa Páginas de Português, na Antena 2, em 16 de abril de 2023).