Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Considere-se a seguinte frase:

«Não, o meu casamento não foi bonito como devem ser os casamentos reais»

Para alunos do 2.º CEB, real pode ser considerado um adjetivo qualificativo, uma vez que não estão familiarizados com o adjetivo relacional?

Resposta:

As opções didáticas a seguir na gestão do ensino dos conteúdos gramaticais podem envolver complexidade. A questão que coloca prende-se com o facto de, de acordo com os documentos programáticos, os alunos não estudarem a subclasse dos adjetivos relacionais. Esta opção curricular implica que os alunos não estarão em posse de conhecimentos que lhes permitam classificar adjetivos relacionais como maternal, nacional, fluvial, entre outros.

Em termos gerais, sou inclinada a afirmar que integrar uma palavra numa classe distinta daquela a que pertence não será muito estruturante para os alunos, que, mais à frente no seu percurso, se confrontarão com a necessidade de reestruturarem o seu saber. Por esta razão, considero preferível simplesmente não trazer para os exercícios de sala de aula adjetivos que integrem estas classes, promovendo, antes, atividades que envolvam adjetivos qualificativos ou numerais.

Não obstante, é também importante que se diga que, em alguns casos, os adjetivos relacionais podem transcategorizar, passando a integrar a classe dos adjetivos qualificativos. Veloso e Raposo apresentam um exemplo deste processo com o adjetivo teatral, a partir dos seguintes exemplos:

(1) «arte teatral»

(2) «um indivíduo teatral»

Com explicam os autores, em (1)

«o adjetivo teatral tem a sua leitura primitiva, de adjetivo relacional: o adjetivo atribui à entidade designada pelo nome arte o conjunto complexo de propriedades que caracterizam a entidade ‘teatro’; tal como a maioria dos adjetivos relacionais, o adjetivo tem aqui uma função classificadora, criando um subtipo “natural” de arte, no contexto da nossa cultural; trata-se da arte que tem que ver com o teatro, não com o cinema, com a pin...

Pergunta:

Na expressão «Houve até cartazes afixados nas paredes que aludiam à integridade territorial do império», o adjetivo territorial desempenha a função sintática de complemento do nome ou de modificador do nome?

Antecipadamente grata.

Resposta:

O adjetivo territorial desempenha a função sintática de modificador do nome restritivo.

Embora o adjetivo territorial seja um adjetivo relacional, neste caso particular não desempenha a função de complemento do nome porque não se trata de um argumento pedido pelo nome. O nome integridade não é deverbal (formado a partir de um verbo) pelo que não se associa a complementos. Para além disso, o adjetivo territorial tem uma função classificatória, ou seja, associa-se ao nome criando um subtipo de integridade. Assim «integridade territorial» denota um tipo diferente da «integridade fluvial» ou da «integridade nacional»1.

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações sobre adjetivos relacionais classificadores, cf. Veloso e Raposo in Raposo et al., Gramática do Português.  Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1378-1379.

Pergunta:

No título "Amor de perdição: um bom romance canonizado pelas razões erradas", retirado de Luís Miguel Queirós in https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/amor-de-perdicao-um-bom-romance-canonizado-pelas-razoes, o ato ilocutório, se bem que expresse uma opinião do autor, não será assertivo, pois não apresenta um estado de espírito do locutor, mas sim afirma o que o mesmo pensa do romance?

Quanto muito, pelo que investiguei, os adjetivos "bom" e "erradas" retiram alguma força de assertividade ao ato?

Grata pela atenção.

Resposta:

Antes de mais, e visto que a teoria dos atos de fala opera com o conceito de proposição, deveremos considerar que o enunciado apresentado é elítico, sendo equivalente à proposição com o verbo ser:

(1) «Amor de perdição é um bom romance canonizado pelas razões erradas.»

No que respeita aos atos ilocutórios expressivos, teremos de começar por considerar que o seu objetivo é o de expressar emoções, sentimentos, avaliações, juízos de valor ou desejos, ao passo que os atos ilocutórios assertivos têm como objetivo expressar a crença na verdade da proposição expressa. 

Entre os atos ilocutórios expressivos, há quem considere a expressão da opinião1, no sentido de o ato ilocutório ser também avaliativo. Nesse sentido, o enunciado seguinte configura um ato ilocutório expressivo:

(2) «Que lindo arranjo de flores.»

Nesta ordem de pensamentos, poderemos considerar que o enunciado presente em (1) como um ato ilocutório expressivo, que será equivalente a (3):

(3) «Infelizmente, Amor de perdição é um bom romance que foi canonizado.»

Poderemos também aventar a hipótese de estarmos perante um ato ilocutório híbrido, que conjuga o assertivo com o expressivo, tal como se descreveu nesta resposta

De qualquer forma, pelo facto de esta classificação ser discutível e de estarmos perante uma situação que se encontra na margem dos atos considerados prototípicos, a análise e classificação deste enunciado não se ajustará ao tipo de abordagem feita no ensino não universitário.

Disponha sempre!

 

Pergunta:

Podem me ajudar quanto à classificação das seguintes frases?

• Faça uma boa viagem!

• Um ótimo dia!

• Siga-me!

• Xô preguiça!

Penso que as duas primeiras são optativas e as duas últimas são imperativas, mas me falaram que a primeira e a terceira são imperativas e a segunda e a última são optativas. Qual a classificação correta?

Resposta:

As frases optativas caracterizam-se por expressarem um desejo do locutor, ou seja, tipicamente, expressam um ato ilocutório expressivo1:

(1) «Que seja feliz!»

Estas frases podem ser construídas com a elipse do elemento que verbaliza o desejo, como em (2), onde se omite um complementador como «que» ou «Eu desejo que»:

(2) «Pudesses tu ajudá-la.»

As frases imperativas expressam uma ordem, ou seja, tipicamente, expressam um ato ilocutório diretivo2:

(3) «Senta-te.»

Tendo em consideração estes aspetos, poderemos classificar da seguinte forma as frases apresentadas pela consulente:

(i) frases optativas:

    − «Faça uma boa viagem!»

    − «Um ótimo dia!»

Estas são frases optativas elípticas, pois verifica-se a elisão do elemento complementador, mas expressam claramente um desejo por parte do locutor.

(ii) frases imperativas:

     − «Siga-me!»

   ...

Pergunta:

Eu gostaria de saber com qual pessoa gramatical o verbo que segue os sujeitos ligados pela conjunção ou deve concordar.

Exemplo:«Ou tu ou eu pago/pagas a conta»

No exemplo, a ação verbal só pode ser exercida por uma das pessoas.

Napoleão Mendes de Almeida diz que, quando os sujeitos são de números diferentes, o verbo vai para o plural; só que, nos exemplos que ele deu para esta regra, ambos os sujeitos são de terceira pessoa.

Obrigado antecipadamente.

Resposta:

Quando os pronomes se encontram coordenados pela conjunção ou, o verbo faz a concordância na 1.ª pessoa do plural:

(1) «Ou tu ou eu pagamos a conta.»

Note-se, todavia, que esta concordância implica uma leitura inclusiva do valor da conjunção ou. Isto significa que a frase (1) é equivalente a (2):

(2) «Eu e tu pagamos a conta.»

No entanto, se pretendermos que ou tenha uma leitura exclusiva (ou seja, que sinalize apenas um dos elementos do sujeito), a frase terá de ter outra sintaxe. Ela poderá ter uma estrutura como a que se apresenta, por exemplo, em (3):

(3) «Alguém paga a conta: ou eu ou tu.»

Pelo que ficou dito, a concordância do verbo com a 1.ª ou 2.ª pessoa é, no caso em análise, incorreta.

Disponha sempre!