Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Encontrei a seguinte oração em um livro técnico:

«No estudo das normas jurídicas, a doutrina costuma distinguir entre regras e princípios.»

Achei absurda a construção. Acredito que, apesar de o verbo possuir a acepção de diferenciar coisas "entre" si, não aceita tal preposição. Ao meu ver, o correto seria «... a doutrina costuma distinguir regras de princípios». Mas ao pesquisar pela Internet, achei alguns outros exemplos deste uso.

Por favor, poderiam me esclarecer se estou equivocada?

Resposta:

O verbo distinguir pode reger a preposição entre.

Este verbo tem um funcionamento sintático muito rico, pois pode funcionar como transitivo direto:

(1) «A direção distinguiu os melhores trabalhadores.»

Funciona também como transitivo direto e indireto, regendo diversas preposições como por exemplo de, entre, com, entre outras1:

(2) «Distinguiu o João dos outros alunos.» (com o valor de “diferençar fazer a distinção”)

(3) «Distinguiu entre o certo e o errado.» (com o valor de “diferençar; fazer a distinção; separar”)

(4) «Distinguiu o João com o prémio de melhor aluno.» (com o sentido de “dar distinção; condecorar”)

Assim, podemos concluir que a construção identificada pelo consulente é correta, sendo, no caso, equivalente, em termos de sentido, à produzido pela estrutura apresentada em (5):

(5) «... a doutrina costuma distinguir regras de princípios»

Disponha sempre!

 

1. Para maior aprofundamento, cf. Luft, Dicionário prático de regência verbal. Ática, 2008, p. 217-218.

Pergunta:

Estive pesquisando sobre licença poética e vi algumas fontes dizendo que esta pode ser utilizada por todos os autores, não importando se são poetas ou não, isto é, o autor de texto de não ficção também pode se valer da licença poética em suas criações.

Essa informação procede?

Fico grata e bom trabalho!

Resposta:

A licença poética é uma liberdade concedida a um criador no contexto de uma produção artística para desrespeitar uma dada norma, um determinado cânone ou um dado modelo1. Embora tenha sido criada no contexto da escrita poética, a licença poética é, no atual contexto, entendida sobretudo como uma liberdade concedida ao artista para que este possa criar sem qualquer tipo de limitações. Na escrita, permite, por exemplo, ao poeta não usar rima ou não respeitar a mancha textual (não tendo de escrever da esquerda para a direita numa linha contínua); autoriza o autor de qualquer tipo de literatura a criar palavras novas ou a desrespeitar as regras de sintaxe para a boa formação de uma frase. A licença poética pode estender-se a outros domínios artísticos que não a literatura para expressar sentidos: é o caso da publicidade.

Assim sendo, podemos encontrar manifestações do fenómeno referido como licença poética em contextos fora da literatura e, portanto, em textos de não ficção. Todavia, esta opção aparece sempre associada a uma significação expressiva, trabalhada intencionalmente pelo autor/criador. Por essa razão, não poderemos confundir esta liberdade com o desrespeito pela norma que ocorre em textos do quotidiano e cuja intenção comunicativa não passa pela manifestação artística. Nestes casos, a escrita deve obedecer a um conjunto de regras pré-determinadas e fixadas nas gramáticas.

Disponha sempre!

 

 1. Cf. conceito de licença poética apresentado por Carlos Ceia em E-dicionário de Termos Literários.

Pronomes demonstrativos atratores de próclise?
A questão da colocação dos clíticos

A dúvida relativa à colocação do pronome átono nas frases «Isso encanta-me» ou «Isso me encanta» dá aso à reflexão da professora Carla Marques sobre a colocação dos clíticos com pronomes demonstrativos. 

Apontamento incluído no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 17 de setembro de 2023.

Pergunta:

Qual a designação gramatical da expressão «vai andando.»?

Sintagma/locução verbal? Com valor interjetivo/imperativo?

Obrigado.

Resposta:

O segmento «vai andando» pode ser designado locução verbal. Este conceito refere um «conjunto formado de um verbo auxiliar + um verbo principal»1.

Esta construção pode expressar a modalidade deôntica, se se tratar de um enunciado que pretende agir sobre o interlocutor veiculando um valor de ordem ou de conselho. Poderá configurar a modalidade epistémica se o locutor pretender, com o seu enunciado, descrever uma dada situação do mundo, como acontece na frase (1):

(1) «O Luís vai andando.»

Disponha sempre!

 

1. Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo. 1988, p. 121.

Pergunta:

1) O número de mortes subiu para quarenta e dois.

2) O número de mortes subiu para quarenta e duas.

Qual das frases anteriores está gramaticalmente correta? Porquê?

Agradeço antecipadamente o auxílio.

Resposta:

Ambas as frases são possíveis.

A questão colocada coloca o problema da concordância de um numeral com um sintagma nominal complexo composto pela expressão de quantificação «o número de», que é o elemento nuclear, seguida do nome «mortes».

Ora, neste caso, a concordância pode ocorrer com o núcleo número, o que determina a adoção do singular masculino:

(1) «O número de mortes subiu para quarenta e dois.»

Também pode ocorrer com o nome mortes, o que determina o plural feminino:

(2) «O número de mortes subiu para quarenta e duas.»

Esta segunda opção será mais comum, e talvez a preferível, porque a interpretação mais natural será a de que existe uma elisão na frase, que, na sua forma completa, corresponderia a (3), cujo uso se evita pela repetição da palavra:

(3) «O número de mortes subiu para quarenta e duas mortes.»

Disponha sempre!