Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

O uso de "diga" ou "diga-me"/"diga se faz favor" etc no contexto de serviços é considerado correto ou errado? Equivale a boa ou má educação?

Quando estamos numa fila e chega a nossa vez, é costume ouvir da parte do prestador de serviços ''diga"/"diga se faz favor"/etc

Ouvi hoje que há quem considere este "diga" má educação...

Questiono-me o que deverão dizer em vez de "diga" e o que não seria má educação?

Existe alguma regra de etiqueta aqui ou isto é uma diferença regional? Pessoalmente, na maior parte das vezes sempre ouvi dizer "diga" (ou uma variante).

Muito obrigada pela atenção.

Resposta:

A opção pela expressão «Diga» ou suas variantes não será considerada falta de educação para com o interlocutor em contexto de atendimento ao público, mas, nalguns contextos, poderá ser sentida como desajustada.

Há que ter em consideração o grau de formalidade que o serviço exige. Com efeito, num serviço de contexto formal, os manuais de etiqueta1 indicam aos seus colaboradores que devem evitar expressões como «Diga!», «Sim…?» Neste âmbito, será preferível recorrer a expressões como «Em que posso ajudá-lo?» ou «Queira dizer, por favor.»

Não obstante, em contextos de atendimento ao público menos formais, a opção por «Diga, por favor» poderá ser aceitável, uma vez que marca a disponibilidade para uma interação verbal.

Disponha sempre!

 

Cf. Instruções do Manual de Boas Práticas de Atendimento da Câmara Municipal de Ílhavo.

<i>Haver</i> impessoal
Uma questão de concordância

A identificação da frase correta entre as frases «Promessas terrenas, não as havia» e «Promessas terrenas, não as haviam» leva a professora Carla Marques a analisar os usos impessoais do verbo haver

 Apontamento incluído no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 15 de outubro de 2023.

Pergunta:

"Cabe destacar que os juízes da mesma nacionalidade de qualquer dos contendores, embora conservem o direito de atuar, podem declarar-se ou ser declarados impedidos de julgar uma causa. "mesma nacionalidade DE" ou "mesma nacionalidade QUE"? Muito obrigado!

Resposta:

No caso em apreço, será preferencial a opção pela preposição de, mas note-se que nem todos os falantes poderão ter a mesma sensibilidade perante este facto linguístico para o qual não encontrámos descrição nas fontes consultadas.

A construção «mesmo + substantivo» pode ser seguida de duas estruturas:

(i) um sintagma preposicional:

      (1) «Escolhi os textos do mesmo nível dos premiados anteriormente

(ii) uma oração subordinada relativa:

      (2) «Escolhi textos com o mesmo nível que tinham os premiados anteriormente

Não obstante, em construções com o valor de comparação quantitativa, é possível fazer seguir a estrutura «mesmo + substantivo» de uma oração elíptica, na qual se omite o verbo, como em (3), ou na qual se omite o segmento que explicita o segundo termo de comparação ou parte dele (4):

(3) «Escolhi os textos com o mesmo nível que os (que foram) premiados anteriormente.»

(4) «Escolhi os textos com mesmo nível que (o d[os]) os premiados anteriormente.»

Nesta linha de pensamento, na frase apresentada, parece ser preferencial a opção pela estrutura seguida de sintagma preposicional, como em (5):

(5) «Cabe destacar que os juízes da mesma nacionalidade de qualquer dos contendores […]»

Todavia, é possível que a frase seja entendida como elíptica, o que numa comparação é algo frequente:

(6) «Cabe destacar que os juízes da mesma nacionalidade que (a de) qualquer dos contendores […]»

(6) «Cabe destacar que os juízes da mesma ...

Pergunta:

«Vinha a comer.»

Como explicar esta frase a um nativo de língua inglesa?

Obrigada.

Resposta:

A construção em causa expressa um valor progressivo, ou seja, descreve uma situação que está a acontecer, que não está concluída. O facto de o verbo vir se encontrar no imperfeito do indicativo permite localizar a situação no passado, estando esta sobreposta a uma outra que aqui não nos é dada a conhecer. Esta relação pode ser exemplificada pela frase seguinte:

(1) «Quando o vi chegar, ele vinha a comer.»

Para além disso, o verbo vir é um verbo de orientação deítica que, neste caso, indica um movimento em direção ao locutor da frase, numa orientação de mais longe para mais perto.

Disponha sempre!

Pergunta:

Vocês têm algum artigo, em seu site, que seja extremamente confiável quanto a uma lista de pleonasmos viciosos? Confesso que me irrito com a enorme quantidade de portais de acesso à internet que não têm nem argumentos para que possam dizer o que é ou o que não é pleonasmo... E, ainda, falam em "pleonasmo" como se só existisse o "vicioso"... pois, obviamente, há, também, o "estilístico"/"de reforço"!

Não é verdade isso?

Ou, se não têm o artigo todo, sabem de outro, para me ser indicado, de qualquer site que seja de verdade então?

Por favor, muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Do ponto de vista estilístico, o pleonasmo é uma figura de estilo que tem como «objectivo reforçar uma ideia, repetindo-a, causando um efeito de eco semântico»1. Trata-se, portanto, de uma figura que assenta na redundância, na repetição. Este processo pode ocorrer por processos gramaticais, como em (1) onde o pronome repete o nome ou, como é mais frequente, por processo lexicais, como em (2), onde o sintagma «para fora» retoma o valor semântico de sair:

(1) «O João, conheço-o bem.»

(2) «Ele acabou de sair para fora.»

Há, todavia, uma distinção entre os usos expressivos do pleonasmo e os usos ditos viciosos, que são, por essa razão, considerados erro. Como nos explica Bechara, «[o] grande juiz entre os pleonasmos de valor expressivo e os de valor negativo (por isso considerados erro de gramática) é o uso, e não a lógica. Se não dizemos, em geral, fora de situação especial de ênfase: Subir para cima ou Descer para baixo, não nos repugnam construções com O leite está saindo por fora ou Palavra de rei não volta atrás2

Por esta razão, não será possível elaborar uma lista exaustiva de pleonasmos viciosos, porque há sempre que considerar o contexto em que eles estão a ser usados e a intenção a que são associados. De qualquer forma, os usos que denotam uma falta de consciência da repetição presente nos termos mobilizados será, em muitas situações, um caso de pleonasmo vicioso. Bechara apresenta alguns exemplos de usos que se poderão integrar nesta classificação: «decapitar (por decepar, já que decapitar só pode referir-se à cabeça) a cabeça, exultar de alegria, panaceia universal, esquecimento involuntário, desde ab aeterno (ab aeterno é expressão latina que já indica des...