Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Tenho dúvidas acerca da formulação «Ele olhou à volta/em redor da sala», com o sentido de alguém estar dentro de uma sala ou de um espaço fechado e olhar a toda a sua volta. Este uso está correto?

«Em redor» ou «à volta de uma sala» não seria aquilo que está no seu exterior e que a circunda?

Resposta:

Com efeito, as formulações apresentadas não expressam a intenção que tem em mente.

As locuções «à volta de» e «em redor de» são equivalentes e indicam um movimento que ocorre à roda de alguma coisa, o que normalmente é processado do lado de fora1:

(1) «Ele andou à volta de / em redor da escola.»

(2) «O lenço foi colocado à volta do / em redor do pescoço.»

Para indicar um movimento ocular que tem lugar no interior do espaço, poderá optar por formulações como:

(3) «Na sala, olhou em seu redor / à sua volta.»

(4) «Olhou o espaço que o rodeava.»

Disponha sempre!

 

1. Consultou-se o Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa (em linha).

Pergunta:

Na frase «Entrei em casa há pouco», que tipo de dêixis é configurada pela forma verbal?

Não podemos admitir as três: pessoal (uso da 1.ª pessoa), espacial e temporal ( pretérito)?

A frase foi retirada de um manual escolar do 12.º ano que apresenta como solução: «deítico espacial».

Obrigada.

Resposta:

A forma verbal entrei tem a capacidade de expressar semanticamente três tipos de dêixis: pessoal, temporal e espacial. Todavia, a validação deste funcionamento dêitico depende do seu uso em cada frase específica.

A análise da dêixis associa-se à interpretação da referência de uma dada palavra, centrando-se na identificação das expressões linguísticas cuja significação está dependente de fatores do contexto situacional, como os participantes, as coordenadas espaciais ou as coordenadas temporais.

Assim, a forma verbal entrei, presente na frase em análise, faz referência ao locutor por meio da flexão na 1.ª pessoa, o que se enquadra na dêixis pessoal. Esta forma verbal ativa também a referência a um intervalo de tempo anterior ao momento do ato de enunciação, pelo que contribui para a dêixis temporal.

Por fim, recordemos que a dêixis espacial «permite referir entidades através do seu posicionamento relativamente ao espaço ocupado pelos intervenientes no ato de enunciação»1. Neste âmbito, são particularmente produtivos os demonstrativos este/esse/aquele e os advérbios aqui/ali/aí/lá, entre outros. Consideramos também o uso de verbos de orientação deítica, como vir e ir que indicam, respetivamente, um movimento em direção ao local onde se encontra o locutor ou um movimento em direção a um local onde este não se encontra. No caso do verbo entrar, se este configurar um movimento em direção a um alvo, com uma orientação de fora para dentro (de aqui para ali), então configura um uso deítico, constituindo um caso de dêixis espacial.

Como não estamos em posse do contexto alargado em que surge esta frase, não poderemos garantir com total certeza que o verbo entrar esteja a ser usado com orientação deítica....

Pergunta:

Qual é a diferença entre ciência e disciplina e área de estudo? Ou seja, quando se pode dizer: ciência que estuda, ou disciplina que estuda, ou área de estudo?

Será que o direito das sucessões é uma disciplina, ciência, estudo, ou área de estudo?

Em árabe a gente diz: 'ilmul-farāid/Almawāriith (علم الفرائض/المواريث), cuja tradução literal seria: «ciência das sucessões».

Será que está correto? Se não está, então como se pode contextualizar na língua portuguesa?

Obrigado.

Resposta:

A palavra ciência pode ser usada com o sentido de «conjunto dos conhecimentos exatos, universais e verificáveis, expressos por meio de leis, que o ser humano tem sobre si próprio, sobre a natureza, a sociedade, o pensamento»1. A palavra disciplina designa, entre outras possibilidades, um «domínio particular ou área específica que é objeto delimitado de ensino»1. Já a expressão «área de estudo» pode referir um «espaço de domínio do conhecimento».

Assim sendo, ciência será a palavra com a significação mais abrangente. No âmbito da ciência, poderemos encontrar disciplinas ou «áreas de estudo» (as expressões são sinónimas) que se dedicam a investigar / estudar determinados domínios mais específicos. Por esta razão, são corretas as expressões «a ciência estuda […]», «a disciplina / área de estudo estuda […]». Espera-se, no entanto, que a primeira construção refira um objeto de estudo mais abrangente, ao passo que na segunda construção se referirá algo mais específico.

Atentemos nos exemplos:

(1) «A linguística é uma ciência que procede ao estudo científico da linguagem e das línguas naturais.»

(2) «A sintaxe é uma disciplina que estuda a estrutura ou construção das frases e o seu encadeamento no discurso.»

No âmbito da pergunta efetuada, poderemos considerar que o termo direito designa a «ciência que se ocupa do estudo das leis e das instituições jurídicas»1, enquanto o «direito das sucessões» será uma área de estudo / disciplina do direito.

Disponha sempre!

 

1.

Pergunta:

Perante as seguintes frases, não entendo porque a primeira é identificada como verdadeira e a segunda falsa.

1.ª «Estás constipado, pois não paras de espirrar!»

2.ª «Ele espirrava muito, pois estava constipado.»

Agradecendo a atenção, aguardo resposta.

Resposta:

Não temos indicação do quadro no qual se deve processar a interpretação das frases apresentadas, pelo que nos cingiremos a uma análise no quadro da articulação entre orações.

Neste plano, na frase (1), a oração «pois não paras de espirrar» é uma oração coordenada explicativa que justifica a afirmação «Estás constipado»:

(1) «Estás constipado, pois não paras de espirrar.»

Assim sendo, a oração coordenada explicativa não é uma causa da primeira oração, ou seja, espirrar não provoca uma constipação. Esta oração explicativa vem justificar afirmação «Estás constipado».

Em (2), a oração «pois estava constipado» é uma oração subordinada adverbial causal:

(2) «Ele espirrava muito, pois estava constipado.»

Neste caso, a oração subordinada é apresentada como uma causa para o facto de espirrar muito. Ou seja, no mundo tal como o conhecemos a constipação pode ser a causa dos espirros.

No âmbito desta interpretação, poderemos afirmar que a inferência / a conclusão presente na frase (1), «Estás constipado», pode ser falsa, ao passo que na frase (2) ambas as orações são dadas como verdadeiras.

Disponha sempre!

Pergunta:

Tenho uma grande dúvida relativa ao complemento determinativo.

A minha professora deu-nos um powerpoint no qual dá dois exemplos que eu não compreendi.

Um deles é "O bolo de laranja estava muito bom", sendo dito que "de laranja" é complemento determinativo. Não seria aposto, já que está a completar o sentido do nome?

O outro é "Ninguém teve notícias dele" e é dito que "dele" é complemento determinativo. Não seria complemento direto?

Muito obrigada!

Resposta:

«Complemento determinativo» é uma designação que era usada na Nomenclatura Gramatical Portuguesa de 1967 para referir um tipo específico de complemento, cuja natureza se descreve da seguinte forma:

«O complemento determinativo é constituído por um nome ou equivalente, o qual se liga a outro nome ou a um adjetivo por meio da preposição de.

Este complemento pode estabelecer relações diversas com o nome determinado, particularizando a sua ideia.

Origem: um barulho de passos; o vinho do Porto

Qualidade: um homem de ação; um restaurante de renome

Fim: uma agulha de tricô; uma mesa de jogo

Posse: a caneta do pai

Tempo: a roupa de verão

Matéria: um anel de ouro

Parentesco: o tio do João»1

De acordo com esta perspetiva, os constituintes destacados a negrito em «bolo de laranja» e «notícias dele» desempenham a função sintática de complemento determinativo, indicando qualidade e posse, respetivamente.

No entanto, refira-se que a função sintática de complemento determinativo não é contemplada em documentos mais recentes, como o Dicionário Terminológico, que serve de referência para os termos gramaticais a usar no ensino não universitário. Gramáticas científicas mais recentes, como a Gramática da Língua Portuguesa, de M...