Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «Mas todos nós podemos fazer algo para prevenir este tipo de crime», o segundo elemento «para prevenir este tipo de crime» pode-se classificar como uma oração subordinada adverbial final ou como substantiva completiva?

Se se verificar o primeiro caso, a oração desempenha a função sintática de modificador; se por outro lado, se verificar o segundo, a oração tem a função sintática de complemento oblíquo, certo?

Agradecia um esclarecimento.

Resposta:

A oração em questão constitui uma oração subordinada completiva de nome.

A oração «para prevenir este tipo de crime» integra o sintagma nominal «algo para prevenir este tipo de crime» com a função de complemento de nome1. Esta função é comprovada pelo facto de a oração poder ser substituída pelo pronome indefinido isso:

(1) «Mas todos nós podemos fazer algo para isso.»

Disponha sempre!

 

1. Para um aprofundamento relativo à diferença entre orações completivas e orações especificativas de nome, cf. Barbosa in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1879-1888.

Pergunta:

Tenho dúvidas quanto à colocação dos pronomes clíticos nas frases em que existe enumeração de ações.

Por exemplo, na frase «Todos se riam», o todos desencadeia a próclise. Mas numa frase em que se enumerem várias ações e o verbo pronominal se encontre no meio ou no fim, deve haver próclise ou não? A forma correta é «Todos falavam, se interpelavam, se riam e conversavam», ou «Todos falavam, interpelavam-se, riam-se e conversavam»?

Resposta:

Ambas as formas são corretas.

O pronome todos desencadeia próclise, como em (1):

(1) «Todos o viram.»

Quando se encontra no início de estruturas coordenadas, o pronome todos pode alargar a sua influência a todos os segmentos (2) ou fazê-la incidir apenas sobre o primeiro elemento (3):

(2) «Todos o viram naquele dia e o cumprimentaram logo de seguida.»

(3) «Todos o viram naquele dia e cumprimentaram-no logo de seguida.»

Por esta razão, a frase apresentada é possível tanto com próclise do clítico como com ênclise.

Disponha sempre!

Pergunta:

Considere-se a seguinte frase:

«Não, o meu casamento não foi bonito como devem ser os casamentos reais»

Para alunos do 2.º CEB, real pode ser considerado um adjetivo qualificativo, uma vez que não estão familiarizados com o adjetivo relacional?

Resposta:

As opções didáticas a seguir na gestão do ensino dos conteúdos gramaticais podem envolver complexidade. A questão que coloca prende-se com o facto de, de acordo com os documentos programáticos, os alunos não estudarem a subclasse dos adjetivos relacionais. Esta opção curricular implica que os alunos não estarão em posse de conhecimentos que lhes permitam classificar adjetivos relacionais como maternal, nacional, fluvial, entre outros.

Em termos gerais, sou inclinada a afirmar que integrar uma palavra numa classe distinta daquela a que pertence não será muito estruturante para os alunos, que, mais à frente no seu percurso, se confrontarão com a necessidade de reestruturarem o seu saber. Por esta razão, considero preferível simplesmente não trazer para os exercícios de sala de aula adjetivos que integrem estas classes, promovendo, antes, atividades que envolvam adjetivos qualificativos ou numerais.

Não obstante, é também importante que se diga que, em alguns casos, os adjetivos relacionais podem transcategorizar, passando a integrar a classe dos adjetivos qualificativos. Veloso e Raposo apresentam um exemplo deste processo com o adjetivo teatral, a partir dos seguintes exemplos:

(1) «arte teatral»

(2) «um indivíduo teatral»

Com explicam os autores, em (1)

«o adjetivo teatral tem a sua leitura primitiva, de adjetivo relacional: o adjetivo atribui à entidade designada pelo nome arte o conjunto complexo de propriedades que caracterizam a entidade ‘teatro’; tal como a maioria dos adjetivos relacionais, o adjetivo tem aqui uma função classificadora, criando um subtipo “natural” de arte, no contexto da nossa cultural; trata-se da arte que tem que ver com o teatro, não com o cinema, com a pin...

Pergunta:

Na expressão «Houve até cartazes afixados nas paredes que aludiam à integridade territorial do império», o adjetivo territorial desempenha a função sintática de complemento do nome ou de modificador do nome?

Antecipadamente grata.

Resposta:

O adjetivo territorial desempenha a função sintática de modificador do nome restritivo.

Embora o adjetivo territorial seja um adjetivo relacional, neste caso particular não desempenha a função de complemento do nome porque não se trata de um argumento pedido pelo nome. O nome integridade não é deverbal (formado a partir de um verbo) pelo que não se associa a complementos. Para além disso, o adjetivo territorial tem uma função classificatória, ou seja, associa-se ao nome criando um subtipo de integridade. Assim «integridade territorial» denota um tipo diferente da «integridade fluvial» ou da «integridade nacional»1.

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações sobre adjetivos relacionais classificadores, cf. Veloso e Raposo in Raposo et al., Gramática do Português.  Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1378-1379.

Pergunta:

No título "Amor de perdição: um bom romance canonizado pelas razões erradas", retirado de Luís Miguel Queirós in https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/amor-de-perdicao-um-bom-romance-canonizado-pelas-razoes, o ato ilocutório, se bem que expresse uma opinião do autor, não será assertivo, pois não apresenta um estado de espírito do locutor, mas sim afirma o que o mesmo pensa do romance?

Quanto muito, pelo que investiguei, os adjetivos "bom" e "erradas" retiram alguma força de assertividade ao ato?

Grata pela atenção.

Resposta:

Antes de mais, e visto que a teoria dos atos de fala opera com o conceito de proposição, deveremos considerar que o enunciado apresentado é elítico, sendo equivalente à proposição com o verbo ser:

(1) «Amor de perdição é um bom romance canonizado pelas razões erradas.»

No que respeita aos atos ilocutórios expressivos, teremos de começar por considerar que o seu objetivo é o de expressar emoções, sentimentos, avaliações, juízos de valor ou desejos, ao passo que os atos ilocutórios assertivos têm como objetivo expressar a crença na verdade da proposição expressa. 

Entre os atos ilocutórios expressivos, há quem considere a expressão da opinião1, no sentido de o ato ilocutório ser também avaliativo. Nesse sentido, o enunciado seguinte configura um ato ilocutório expressivo:

(2) «Que lindo arranjo de flores.»

Nesta ordem de pensamentos, poderemos considerar que o enunciado presente em (1) como um ato ilocutório expressivo, que será equivalente a (3):

(3) «Infelizmente, Amor de perdição é um bom romance que foi canonizado.»

Poderemos também aventar a hipótese de estarmos perante um ato ilocutório híbrido, que conjuga o assertivo com o expressivo, tal como se descreveu nesta resposta

De qualquer forma, pelo facto de esta classificação ser discutível e de estarmos perante uma situação que se encontra na margem dos atos considerados prototípicos, a análise e classificação deste enunciado não se ajustará ao tipo de abordagem feita no ensino não universitário.

Disponha sempre!