Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Relativamente às palavras navio e barco (hipónimos) qual poderia ser o hiperónimo?

Poderia ser «meios de transporte»?

Obrigado.

Resposta:

Antes de mais, teremos de considerar que a hiperonímia é uma «[r]elação de hierarquia semântica entre palavras, em que o significado de uma (designada por hiperónimo), por ser mais geral, inclui o de outras (designadas por hipónimos)»1.

Isto significa que este conceito se insere no plano da semântica e descreve uma relação de hierarquia entre palavras, criada a partir da significação dos termos envolvidos. Assim, o hiperónimo será a palavra que detém um significado mais geral ao passo que o hipónimo tem um significado mais específico.

As palavras navio e barco são ambas termos específicos que referem tipos concretos de embarcação. De acordo com esta interpretação, a palavra embarcação pode ser assumida como o termo hiperónimo por veicular uma referência de âmbito mais generalizado.

Disponha sempre!

 

1. Dicionário Terminológico em linha.

Pergunta:

Qual seria a forma correta de redigir a seguinte frase?

«Ela acompanhou-o até ao táxi»

ou:

«Ela acompanhou-o ao táxi.»

Não sei se a primeira opção está certa, porque me soa mal. Porém, tenho dúvidas se usar a segunda seja ou não correta.

Poderiam ajudar?

Obrigada.

Resposta:

O verbo acompanhar poderá reger tanto a preposição a como a preposição até (ou a locução prepositiva até a).

Esta possibilidade está prevista no Dicionário gramatical de verbos portugueses, de Malaca Casteleiro, no qual se apresentam os seguintes exemplos:

(1) «O porteiro acompanhou a senhora ao carro.»

(2) «A prima prometeu que o acompanharia até Estrasburgo.»

Uma pesquisa no Corpus de Português, de Mark Davies, mostra que ambas as regências são usadas. Todavia, a opção pela preposição a parece ter maior frequência de usos.

Note-se, porém, que a opção pela preposição até pode, em alguns casos, implicar uma especialização dos significados. Com efeito, esta preposição poderá indicar o limite final de um dado percurso. Pelo que a frase (2) significa que a prima o acompanharia na realização de um percurso que vai desde um local não identificado até ao final desse mesmo percurso, que seria em Estrasburgo. Até poderá ainda, num uso mais informal, indicar uma direção, sem sinalização de um valor de limite espacial, como em (3)1:

(3) «Vai até minha casa e depois vira à direita.»

Em conclusão, a frase apresentada em (4) está correta e, em princípio, será aquela que os falantes escolherão com mais frequência:

(4) «Ela acompanhou-o ao táxi.»

A frase (5) também está correta e poderá ser selecionada se a intenção for a de especificar que se acompanha alguém durante todo o percurso desde o ponto x até ao local onde...

Pergunta:

Gostaria de saber se o emprego do verbo haver na expressão «houve por [adjetivo]» está correto e, se sim, qual o significado dela ou quais expressões equivalentes a ela.

Exemplo: «A comunidade houve por judicioso tratar a sua segurança com prioridade máxima.»

Obrigado.

Resposta:

A construção «haver por» + adjetivo está correta e encontra-se, por exemplo, prevista no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, sendo abonada com o exemplo que se apresenta em (1):

(1) «A justiça não houve por verdadeira a sua inocência.»

Neste uso, o verbo haver tem o significado de «julgar, reputar, considerar».

Disponha sempre!

Pergunta:

Apesar de serem expressões parecidas, geram-me dúvida.

Se pretendermos enfocar o último lugar de uma fila, qual seria o apropriado?

«No final da fila, com muito nervosismo, Mariana aprontava-se para receber o diploma.»

Ou:

«No fim da fila, com muito nervosismo, Mariana aprontava-se para receber o diploma.»

Obrigada.

Resposta:

De uma forma geral, as expressões são sinónimas, podendo ambas ser usadas em diferentes contextos.

A expressão «no fim», de acordo com o registo dicionarístico, tem um escopo alargado e pode ter uma significação mais fina, podendo indicar o momento de cessação de uma atividade que decorreu num determinado intervalo temporal:

(1) «No fim da festa»

Também pode designar a conclusão de alguma coisa (2) ou o final de um fenómeno / acontecimento / evento (3):

(2) «No fim da canção»

(3) «No fim do congresso»

Pode ainda referir a extremidade de algo que se observa na sua extensão:

(4) «No fim da fila»

O nome final é apresentado como sinónimo de fim e tem como significação «o que termina ou conclui qualquer coisa; parte terminal» (Dicionário da Língua Portuguesa. Academia das Ciências de Lisboa). Esta significação permite-lhe surgir em todos os contextos apresentados anteriormente.

No entanto, pelo menos no português europeu, parece existir uma preferência pelo recurso à expressão «no fim», o que é sinalizado numa pesquisa ao Corpus do Português, de Mike Davies, onde identificamos 1672 usos de «no fim de» face a 975 de «no final de». Este facto indicaria que os usos poderiam optar preferencialmente pela construção «no fim da fila», sem que a outra possibilidade fosse desprezada. 

Caberá, assim, à prezada consulente optar pela forma que for da sua preferência.

Disponha sempre!

Pergunta:

 Há uma discordância entre a minha classificação e de outra professora, em que ela aceita que a seguinte frase, de uma crónica de Maria Judite de Carvalho, contém uma enumeração:

«Tudo aquilo é bonito, bem arranjado, atraente, higiénico, impessoal.»

Na minha perspetiva, trata-se de uma adjetivação (qualificativa) sucessiva.

Existe fronteira de classes gramaticais na enumeração? Toda a lista de classes pode ser abrangida na enumeração, como os adjetivos?!

Podem elucidar-nos?!

Obrigado pelo vosso sempre excelente trabalho.

Resposta:

Antes de mais, há que referir que, no âmbito dos estudos literários, a adjetivação e a enumeração não se encontram no mesmo plano. Com efeito, a enumeração é uma figura de dicção descrita pelos estudos retóricos como uma forma de organização do discurso que elenca os elementos que compõem um conjunto1 ou, como descreve Ceia, uma figura que assenta na «[a]dição ou inventário de coisas relacionadas entre si, cuja ligação se faz quer por polissíndeto quer por assíndeto2 Já a adjetivação é um recurso linguístico que pode ser usado para traduzir algum tipo de expressividade, mas não constitui um recurso retórico em si mesmo. Isto significa que a adjetivação pode ser mobilizada para a construção de diversos recursos retóricos, entre os quais se encontra a enumeração.  

Assim, se na frase de Maria Judite de Carvalho pretendermos identificar as figuras de estilo utilizadas, podemos identificar uma enumeração, que se processa pelo recurso à múltipla adjetivação:

(1) «Tudo aquilo é bonito, bem arranjado, atraente, higiénico, impessoal.» (Este Tempo. Caminho, 1991)

A enumeração permite descrever as características da loja e dos seus produtos, as quais são elencadas por meio de um conjunto de adjetivos, organizados de forma assindética.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Marchese e Forradellas,