Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber se em «Vinha pela rua a falar sozinho para si mesmo: "Não irei lá!"» é correta a construção «sozinho para si mesmo». Não seria um pleonasmo «sozinho para si mesmo»?

Muito obrigada e parabéns pelo trabalho!

Resposta:

A expressão pode ser entendida como algo redundante, mas tal não significa que esteja incorreta, pois poderá estar ao serviço de uma intenção expressiva.

O adjetivo sozinho significa «que está completamente só, sem mais ninguém», ao passo que falar é uma atividade que, normalmente, envolve mais do que uma pessoa.  Deste modo, a expressão «falar sozinho» já pressuporá que o locutor desenvolve a atividade de falar apenas para si, não a dirigindo a um interlocutor, pelo que não será necessário acrescentar «para si mesmo» porque a expressão não traz informatividade à frase.

Não obstante, a expressão «falar sozinho para si mesmo» pode implicar outras intenções como o contraste entre «falar para dentro» vs. «falar para o ar»; «falar baixo» vs. «falar alto» e, neste caso, a expressão «para si mesmo» já não será redundante.

Deste modo, o conhecimento do contexto de produção e das intenções do locutor será importante para a avaliação da pertinência do uso de «para si mesmo» na frase em análise.

Disponha sempre!

Pergunta:

Li numa notícia a frase «A metade do corpo dela estava frio, frio».

Minha dúvida é sobre a concordância nominal, porque, intuitivamente, diria «A metade do corpo dela estava fria, fria», mas tenho dúvidas sobre a expressão partitiva «a metade de» e a possibilidade de usar a forma masculina do adjetivo.

Agradeço imensamente vossa ajuda.

Resposta:

No caso em apreço, é possível a concordância tanto no masculino como no feminino, embora seja preferível esta última para evitar ambiguidades.

A concordância com sintagmas que incluam uma expressão partitiva como «metade de» pode ocorrer de duas formas. Vejamos o seguinte exemplo:

(i) a concordância faz-se com a expressão «metade de», ficando o adjetivo no feminino singular:

(1) «Metade das alunas estava calma.»

(ii) a concordância faz-se com alunas, ficando a adjetivo no feminino plural:

(2) «Metade das alunas estavam calmas.»

No caso em apreço, embora a concordância se possa fazer tanto com «metade de» como com corpo e uma vez que a expressão partitiva determina uma palavra que refere uma realidade concreta, será preferível a concordância com «metade de». Ao fazer-se a concordância com corpo, a frase poderá expressar a ideia de «corpo na globalidade», o que entra em conflito com «metade de», podendo passar a ideia de que todo o corpo estava frio e não apenas a sua metade. Por esta razão, para garantir a clareza, parece preferível optar pela forma feminina singular do adjetivo:

(3) «A metade do corpo dela estava fria, fria.»

Disponha sempre!

Pergunta:

1. Entusiasmada, a professora sorriu.

2. A professora, entusiasmada, sorriu.

3. A professora sorriu entusiasmada.

Nas três frases, pode considerar-se que o adjetivo tem um valor adverbial e que desempenha a função sintática de modificador do grupo verbal em todas as ocorrências (grupo móvel)? Considerando a possibilidade de, nas frases 1 e 2, ser um modificador do nome apositivo, esta função sintática pode ser constituída por um grupo adjetival (considerando a informação do Dicionário Terminológico, onde se lê que, tipicamente, são grupos nominais ou orações)?!

Ou é obrigatório subentender-se uma oração subordinada adjetiva relativa explicativa («que estava entusiasmada»)?! Neste caso, só na frase 2 isso seria possível...

Grata desde já pelos vossos esclarecimentos.

Resposta:

Nas frases em questão, o constituinte entusiasmada é um adjetivo que desempenha a função de modificador do nome apositivo.

Antes de mais, comprovamos que, nas frases apresentadas, entusiasmada é um adjetivo pelo facto de admitir flexão em grau, sendo compatível com o advérbio muito:

(1) A professora, muito entusiasmada, sorriu.

Para além disso, comprova-se que entusiasmada incide sobre o grupo nominal «a professora» pelo fenómeno de concordância. Uma alteração no género e número deste grupo nominal geraria alterações no adjetivo, como se observa nas frases (2) e (3):

(2) «O professor, muito entusiasmado, sorriu.»

(3) «As professoras, muito entusiasmadas, sorriram.»

A função sintática desempenhada pelo adjetivo identifica-se pelo facto de este incidir sobre o grupo nominal, independentemente da sua posição na frase. Uma vez que não constitui um argumento do nome professora, desempenha a função de modificador do nome. Trata-se em particular de um modificador apositivo porque não restringe o valor referencial do nome, constituindo, antes, um comentário que pode ser eliminado da frase sem prejudicar a sua gramaticalidade. Neste caso particular, o modificador constitui um comentário avaliativo sobre a realidade denotada pelo nome1, pelo que o adjetivo terá uma natureza avaliativa (mais do que adverbial). Recorde-se que os adjetivos avaliativos «expressa[m] uma avaliação subjetiva, geralmente da responsabilidade do falante, acerca das entidades referidas pelo sintagma nominal»2.

Refira-se ainda que quando os adjetivos não são identificadores, ainda que incidam sobre o nome, podem surgir noutros locais da frase3, o que justifica a possibilidade das frases (4) e (5), sem que a função do adjetivo se altere.

Outra leitura possível é a de que o adjetivo poderá ter uma leitura não atributiva (com...

Pergunta:

Qual é a forma correta para a seguinte frase: «As filhas aprendiam a serem como as mães» ou «as filhas aprendiam a ser como as mães»?

Na minha opinião, a segunda frase é a correta. Contudo, tenho visto defender-se a primeira opção.

É possível elucidarem-me?

Resposta:

Neste caso, a forma preferencial é a que inclui o infinitivo não flexionado (na sua forma dita impessoal).

Embora existam muitas flutuações no caso de uso dos infinitivos não flexionados (infinitivo impessoal) e flexionado (infinitivo pessoal), os usos gerais indicam que quando um verbo tem uma oração completiva infinitiva como complemento direto, o infinitivo não flexionado é preferido na maior parte das construções1. Esta é a situação presente na frase transcrita em (2), o que justifica a preferência pelo infinitivo não flexionado:

(2) «As filhas aprendiam a ser como as mães.»

Disponha sempre!

 

1. Há, todavia, exceções. Para mais informações, cf. Barbosa e Raposo in Raposo et al., Gramática do português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1927-1934.

Pergunta:

Gostaria de saber se está correta a frase seguinte:

«Atento a resposta anterior, informa-se que deverá usar o formulário disponibilizado na página eletrónica da organização X.»

Obrigada.

Resposta:

A construção apresentada na pergunta tem correntemente usos muito pouco frequentes.

Corresponde ao particípio passado do verbo atentar, com o significado de «tendo em consideração, tendo em conta»1.

Se for usado como adjetivo, deve concordar em género com o nome que acompanha: «atenta a carta».

No contexto em que a expressão está a ser usada, tudo indica que se deverá proceder à concordância com resposta:

(1) «Atenta a resposta anterior, informa-se que deverá usar o formulário disponibilizado na página eletrónica da organização X.»

Disponha sempre!

 

1. Dicionário da língua portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa.