Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria, por gentileza, de uma orientação sobre poder ou não suprimir o substantivo (no caso tempo) em construções como os exemplos abaixo:

«Só gosto de músicas de quando eu era criança.»

«Só gosto de músicas do tempo quando eu era criança.»

Daí, fica a dúvida qual das duas construções está correta ou ambas estão?

Obrigado.

Resposta:

Há duas frases possíveis:

(1) «Só gosto de músicas de quando eu era criança.»

(2) «Só gosto de músicas do tempo em que eu era criança.»

O advérbio relativo quando tem a capacidade de introduzir orações relativas com um valor temporal (como em (1)). No entanto, este advérbio tem a limitação de não ser usado com antecedente explícito1, daí a inaceitabilidade da frase apresentada em (3):

(3) «*Só gosto de músicas do tempo quando eu era criança.»

Desta forma, se se pretende explicitar o antecedente na frase, a opção adequada será a que se apresenta em (2), onde o antecedente tempo é retomado pelo pronome relativo que, antecedido da preposição em.

Disponha sempre!

 

* Assinala a inaceitabilidade da frase. 

1. Para mais informações, cf. Veloso in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 2107-2108.

Pergunta:

Na frase «João admira os mesmos pintores que Caio», entende-se que houve a elipse de «admira», isto é, «[…] que Caio (admira)».

Mas estaria igualmente correta uma frase como «João gosta dos mesmos pintores que Caio», considerando-se que o verbo «gostar» pede objeto indireto?

Se considerássemos somente a elipse do verbo, teríamos esta frase agramatical:

*«João gosta dos mesmos pintores que Caio (gosta)».

Ou seja, há que pressupor também a elipse da preposição de:

«João gosta dos mesmo pintores (de) que Caio (gosta)».

É pressuposto aceitável? Está correta a frase «João gosta dos mesmos pintores que Caio»? Se não, que torneios devemos dar à frase para corrigi-la?

Agradeço desde já quaisquer esclarecimentos.

Resposta:

Comecemos por fazer uma precisão: na frase (1), o constituinte «de pintores» tem a função de complemento oblíquo / complemento relativo. Não é complemento indireto porque não se pode substituir pelo pronome lhe.

(1) «Caio gosta de pintores.»

Uma frase como (2) é composta por duas orações: uma subordinante e outra subordinada relativa, introduzida pelo pronome que, o qual tem como antecedente o constituinte pintores:

(2) «João gosta dos mesmos pintores que Caio.»

A segunda oração caracteriza-se pela elipse do verbo gostar, pelo que a frase na sua forma completa seria a que se apresenta em (3):

(3) «João gosta dos mesmos pintores de que Caio gosta.»

No cotejo entre as frases (2) e (3), verifica-se que é a elisão do verbo gostar na oração subordinada que leva à elisão da preposição de, regida pelo verbo, pelo que a frase apresentada em (2) está correta.

Disponha sempre!

Pergunta:

Creio que se usam muitas vezes os advérbios virtualmente e eventualmente incorretamente, como anglicismos. São-no, de facto?

Além do mais, o advérbio aparentemente será um galicismo? Sendo-o, quais são as alternativas?

Finalmente, peço-vos que, caso conheçam outros advérbios utilizados «à inglesa», «à francesa», «à espanhola» ou «à italiana», os deem a conhecer para, possivelmente, corrigir incorreções desapercebidas.

Bem hajam!

Resposta:

Os advérbios virtualmente e eventualmente não são anglicismos uma vez que formados no português a partir da junção do sufixo -mente aos respetivos adjetivos.

Não sendo anglicismo, todavia, o advérbio virtualmente pode ser usado com sentido anglicizante quando tem o valor de «de modo quase completo; praticamente total» (Dicionário Houaiss). O mesmo não se poderá dizer do advérbio eventualmente, que tem registos de uso com o valor de hipótese, possibilidade, desde o século XIX.

A palavra aparentemente, segundo o mesmo Dicionário Houaiss, tem usos registados desde o século XVII, pelo que também não constitui um estrangeirismo.

O Ciberdúvidas apresenta com frequência textos que refletem sobre anglicismos usados no léxico português. Deixo aqui alguns exemplos para consulta:

– "O enigma do ghosting nas relações modernas

 "Como ser bully em português?

 "A paixão, o amor, o namoro e tantas outras relações e ralações

A palavra <i>bastante</i>
Uma palavra associada a diferentes classes de palavras

A palavra bastante pode pertencer a diferentes classes de palavras, o que é explicado pela professora Carla Marques neste apontamento (divulgado no programa Páginas de Português, na Antena 2, dia 22 de janeiro de 2024).

Pergunta:

Em «E levantaram-se todos, e deitaram-se todos ao mar, e chegaram todos à porta da gruta onde morava o Polifemo», considerariam a existência de uma anáfora?

Obrigada!!

Resposta:

A frase retirada da obra Ulisses, de Maria Alberta Menéres, apresenta um polissíndeto, que cria um efeito retórico de ênfase em cada uma das ações descritas na frase. Este recurso pode também ser considerado um caso especial de anáfora (estilística), tal como se refere no E-dicionário de termos literários.

Podemos também considerar que a frase evidencia um caso de anáfora, que contribui para a coesão referencial, na medida em que todas as formas verbais apresentam um sujeito nulo, ou seja, um caso de sujeito não verbalizado (e que se recupera pelo contexto anterior a esse enunciado). Cada manifestação de sujeito nulo retoma o referente do sujeito anterior, criando, deste modo, uma rede referencial que contribui para a coesão do texto.

Disponha sempre!