Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

É correto utilizar a expressão «mas sim»/«depende sim» depois de uma frase na negativa, como por exemplo: «Portanto, não dependem da variação da atividade de uma dada empresa. Dependem sim da estrutura criada e resultam do investimento num determinado tipo de estrutura fixa»?

Obrigado.

Resposta:

A estrutura apresentada é correta.

Quando se utiliza a expressão «mas sim», estamos perante uma coordenação adversativa focalizadora1, na qual um dos termos é modificado por não e outro por sim. Esta construção permite marcar o contraste entre os dois termos coordenados ou entre constituintes dos dois termos.

No segundo caso apresentado (com «depende sim»), não estamos perante uma coordenação de orações, mas as duas frases relacionam-se por contraste, explicitado pelo uso dos advérbios sim e não, estabelecendo uma relação de justaposição.

Disponha sempre!

 

1. Para mais informação, cf. Raposo et al., Gramática do português. Fundação Calouste Gulbenkian, sobretudo pp. 1675-1678 e 1802-1804.

Pergunta:

Queria saber quando é que se deve usar um sujeito posposto no lugar de um sujeito anteposto.Há casos em que um me soa melhor do que o outro, o que me leva a pensar que talvez haja regras por detrás disso. Como gosto de falar bem a minha língua, agradecia que alguém me elucidasse quanto a este assunto.

Deixo também alguns exemplos que talvez vos ajudem a entender melhor aquilo que estou a dizer.

• São tuas as fotos que estão em cima da mesa da sala? • As fotos que estão em cima da mesa da sala são tuas?

Neste caso, a primeira frase soa-me muito mais natural do que a segunda.

• Estão umas fotos em cima da mesa da sala. São tuas? • Umas fotos estão em cima da mesa da sala. São tuas?

Neste caso, a primeira também me soa muito mais natural do que a segunda.

Como puderam ver, em ambos os exemplos, apenas a opção pelo sujeito posposto soa natural, mas não sei o porquê. Será que é puramente uma questão de hábito ou há regras por detrás da escolha de um no lugar do outro?

Muito obrigado desde já.

Resposta:

A posição neutra ou canónica do constituinte com função sintática de sujeito é a pré-verbal, ou seja, a colocação do sujeito antes do verbo.

A opção pela posição pós-verbal pode prender-se com a intenção de colocar o foco noutro constituinte da frase, como acontece na frase (1), na qual se pretende destacar o complemento direto:

(1) «O bolo, fê-lo o João.» 

Podemos assinalar ainda um conjunto de contextos sintáticos que, habitualmente, suscitam a posposição do sujeito ao verbo:

(i) orações interrogativas, introduzidas por pronomes e advérbios interrogativos (quem, que, o que, quanto, qual, como, quando, onde…), que não sejam sujeito: «Onde foi o João

(ii) orações exclamativas: «Que inspirador era aquele livro

(iii) com a forma imperativa: «Faz tu este trabalho!»

(iv) orações subordinadas substantivas completivas com função de sujeito: «É certo que vamos contigo

(v) orações reduzidas de gerúndio ou participiais: «Fazendo o trabalho, percebi a sua dificuldade.», «Feito

Pergunta:

Na frase «Dedico-me à astronomia», «à astronomia» é um complemento oblíquo ou um complemento indireto? Porquê?

Obrigada.

Resposta:

O constituinte «à astronomia» tem a função sintática de complemento indireto.

O complemento indireto é um complemento preposicional cujo núcleo é a preposição a. A possibilidade de ser substituído por um pronome dativo é considerada condição necessária para a identificação desta função, o que a permite distinguir da função de complemento oblíquo, que se identifica por o constituinte não poder ser substituída pelo pronome dativo.

O contraste entre (1) e (2) evidencia esta distinção:  

(1) «Deu um livro à Maria.» («Deu-lhe um livro.»)

(2) «Fui à casa do João.» («*Fui-lhe»)

Em (1), o constituinte «à Maria» é complemento indireto, e em (2), «à casa do João» é complemento oblíquo.

No que respeita à frase apresentada, começaremos por colocá-la na 3.ª pessoa do singular para permitir a pronominalização dos seus constituintes:

(3) «Dedica-se à astronomia.»

Se substituirmos por pronomes, teremos a frase:

Pergunta:

Solicito que me esclareçam se o pois tem valor causal ou explicativo, na frase «O sempre atencioso Tom Hanks interpreta o protagonista, Philips, que não tem outra escolha senão render-se aos somalis, pois a maioria da tripulação barricou-se na sala das máquinas.»

Obrigada.

Resposta:

Na frase apresentada, a conjunção pois tem valor causal.

Neste caso particular, pois estabelece um nexo de causa real entre duas situações: a rendição de Philips aos somalis teve como causa o facto de a tripulação se ter barricado na sala.

A conjunção pois tem valor explicativo quando liga duas orações com um valor de causa de dicto, isto é, um nexo no qual a oração introduzida por pois é utilizada como justificação da afirmação feita na oração anterior, como acontece em:

(1) «Vai chover, pois tenho os ossos a doer.»

Neste caso, não estamos perante uma causa real porque, no nosso mundo, a dor de ossos não provoca chuva. Trata-se, antes, de uma causa de dicto, na medida em que a afirmação introduzida por pois pretende justificar a afirmação de que vai chover (num contexto em que, por exemplo, está muito sol). 

Disponha sempre!

Pergunta:

A expressão «foi nesta data que me meti a viajar pelo mundo fora» assume valor iterativo ou imperfetivo?

Também ponho a hipótese de ser perfetivo. Embora tenha consultado muita informação, continuo sem ter certezas.

Muito obrigada.

Resposta:

O aspeto exprime a temporalidade associada a uma dada situação. Neste caso particular, se tomarmos a frase como um todo, verificamos que a situação nuclear descrita é veiculada pelo verbo viajar.

Do ponto de vista do aspeto lexical, viajar configura o aspeto lexical de evento durativo, uma vez que descreve uma situação dinâmica com duração interna e sem limite temporal inerente, ou seja, atélica.

No entanto, nesta frase, alguns processos gramaticais alteram o valor aspetual de base da situação descrita por viajar, perspetivando-a numa das suas fases. Neste caso particular, podemos considerar que «meter-se a» é equivalente a «começar a», pelo que está a funcionar como um operador aspetual que marca o início da situação descrita, ou seja, veicula um aspeto ingressivo (cf. valores aspetuais associados às diferentes fases de uma situação aqui).

Este aspeto ingressivo é também reiterado pela locução adverbial de localização temporal, «nesta data», que marca, em conjunto com a forma verbal foi, o ponto de início da situação descrita por viajar.