Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«Fazes mal em provocar-me.»

Gostaria de saber, na frase acima:

1. como se classifica sintaticamente o constituinte «mal» e a oração «em provocar-me»;

2. a que subclasse pertence o verbo fazer.

Parabéns pelo vosso trabalho.

Obrigada.

Resposta:

A palavra mal pertence à classe do nome e tem um sentido equivalente a “malefício, dano”. A sua associação ao verbo fazer pode ser interpretada de duas formas:

(i) Mal desempenha a função de complemento direto do verbo fazer (que é um verbo transitivo direto), como o comprova a possibilidade de pronominalização (recorremos à flexão na 3.ª pessoa do singular para facilitar a análise):

(1) «Ele faz mal.» = «Ele fá-lo.»

(ii) Mal forma com o verbo fazer um predicador complexo1. A comprová-lo parece encontrar-se o facto de esta associação formar uma expressão semi-idiomática que equivale a “errar”:

(2) «Ele faz mal.» = «Ele erra.»

Em qualquer das interpretações, a oração «em provocar-me» tem a função de modificador do grupo verbal. Trata-se de uma oração infinitiva introduzida pela preposição em, que pode ser interpretada como equivalente a uma oração subordinada adverbial causal:

(3) «Fazes mal (=Erras) porque me provocas.»

ou a uma oração subordinada adverbial temporal
(4) «Fazes mal (=Erras) quando me provocas.»

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras.

Disponha sempre!

 

1. Neste caso, o predicador complexo é um constituinte formado por um verbo leve (ou de suporte) e o constituinte nominal «mal». Esta expressão caracteriza-se inclusive por um certo grau de cristalização. (cf. Gonçalves e Raposo in Rap...

Pergunta:

Qual/quais os recursos expressivos presentes nos seguintes versos do poema de Eugénio de Andrade:

«e gravemente, comedidas,/ param as fontes a beber-te a face.»

Resposta:

O verso apresentado integra o poema “quando em silêncio passas” (Eugénio de Andrade, As mãos e os frutos).

Podemos considerar que neste verso está presente uma hipálage, um hipérbato e uma metáfora.

A hipálage «consiste na atribuição a um objecto de uma característica que, na realidade, pertence a outro com o qual está relacionado» (in E-dicionário de Termos literários). Neste caso, o sujeito lírico atribui às fontes as qualidades presentes no advérbio gravemente e no adjetivo comedidas, que não lhes pertencem.

Existe um hipérbato, que consiste na alteração da ordem natural dos elementos da frase.

Sem procurar complexificar muito a análise, podemos também identificar uma metáfora (transferência metafórica) em «as fontes a beber-te a face», que aponta para a vitalidade do ser amado que influencia a própria natureza, invertendo a normalidade das situações (o amado beberia nas fontes).

Disponha sempre!

Pergunta:

Frases a ter em conta:

(1) Faltavam alguns dias para a Ana casar.

(2) Só lhe falta ser benzida para que a ponham num altar.

Vi, num trabalho em linha, os constituintes «alguns dias» (frase (1)) e «ser benzida» (frase (2)) classificados como «complemento direto». Não serão antes o «sujeito» do verbo «faltar»?

No mesmo texto, classificava-se como subordinadas adverbiais finais as orações introduzidas por «para», nas frases acima transcritas. Afigura-se-me equívoca esta classificação, porque:

1. as orações iniciadas por «para» não me parecem ser modificadores da oração subordinante;

2. é o verbo «faltar» que rege a preposição «para» (à semelhança de esforçar-se para),.

As orações «para a Ana casar» (frase 1)) e «para que a ponham num altar» (frase 2)) não são antes subordinadas substantivas completivas, com a função de complemento oblíquo?

Parabéns pelo excelente serviço público, que é o vosso trabalho no Ciberdúvidas.

Obrigado. AHV

Resposta:

Os constituintes «alguns dias» e «ser benzida» desempenham a função de sujeito.

O verbo faltar é um verbo pessoal, ou seja, constrói-se com sujeito, que, no caso das frases apresentadas, está expresso. Para além disso, é um verbo transitivo indireto, o que significa que não se constrói com complemento direto, mas sim com complemento indireto. Assim, na frase (1), o sujeito é «alguns dias», pelo que o verbo deve concordar com o sujeito flexionando na 3.ª pessoa do plural:

(1) «Faltavam alguns dias para a Ana casar.»

Na segunda frase, o sujeito é o verbo na forma passiva «ser benzida», pelo que o verbo deve flexionar na 3.ª pessoa do singular:

(2) «Só lhe falta ser benzida para que a ponham num altar.

No que respeita à classificação das orações não finitas que surgem em cada frase, relativamente à segunda frase apresentada pelo consulente, verificamos que se estabelece uma relação de finalidade entre a oração subordinante e a subordinada («ser benzida» terá como fim a colocação no altar), pelo que a oração «para que a ponham num altar» é subordinada adverbial final.

No caso da primeira frase, estamos perante uma oração reduzida de infinitivo1, introduzida pela preposição para. Estas orações são equivalentes a orações introduzidas pela locução conjuncional com o mesmo valor (uma oração desdobrada). Neste caso, a frase apresentada é equivalente a (5):

(5) «Faltavam alguns dias para que a Ana casasse.»

Bechara apresenta como exemplo de oração subordinada adverbial final a seguinte frase:

(5) «Falta pouco para que isto suceda.»

que ilustra uma finalidade não de um facto («de re»), mas do que é dito ou pensado («de dicto...

Pergunta:

Qual a classe e subclasse de «dupla» na expressão «de forma dupla»?

Não me parece que seja um adjetivo numeral, pelo facto de não expressar uma ordem. Será então um quantificador numeral multiplicativo, embora surja após o nome?

Resposta:

Trata-se de um adjetivo qualificativo.

A palavra dupla não integra a classe dos adjetivos numerais nem a dos quantificadores numerais pelas razões que se apresentam de seguida:

(i) Os adjetivos numerais são palavras que expressam a ordenação de elementos, como acontece em (1):

(1) «O primeiro aluno chegou, o segundo aluno já está a chegar, mas o terceiro aluno ainda não se vê.»

São, portanto, adjetivos numerais as palavras primeiro, segundo, terceiro centésimo, etc.

(ii) Os quantificadores numerais multiplicativos são usados em «quantificação de contagem e em quantificação de medição»1, como acontece com dobro, triplo:

(2) «Ele escreveu um texto com o dobro do tamanho permitido.»

(3) «Ele ganhou o triplo do dinheiro previsto inicialmente.»

No interior do constituinte apresentado, a palavra dupla parece significar «que apresenta duas características, dois componentes, duas funções, etc.»(cf. Dicionário Houaiss), pelo que estamos perante um adjetivo qualificativo, o que explica também a sua colocação pós-nominal e a concordância com o nome modificado.

Disponha sempre!

 

...

Pergunta:

«No mês passado, eles...... (partir) para França.»

«Quando era pequeno ...... ( brincar) contigo.»

Será que posso utilizar o pretérito perfeito e imperfeito nas duas frases?

Obrigada.

Resposta:

Na segunda frase são possíveis os dois tempos verbais, enquanto na primeira é expectável o recurso ao pretérito perfeito de indicativo.

Na primeira frase apresentada, o tempo verbal esperado será o pretérito perfeito:

(1) «No mês passado, eles partiram para França.»

Tal acontece porque, nesta frase, combinam-se uma expressão de valor temporal que localiza temporalmente a situação («No mês passado») com o verbo partir, que representa uma situação sem duração temporal interna. Por esta razão, o verbo partir não é compatível com expressões de duração:

(2) «*O João partiu durante duas horas.»

A combinação da expressão de localização temporal com o verbo partir leva a que o recurso ao pretérito imperfeito seja estranho, pois este tempo contribuiria para a construção de uma situação que se prolonga no tempo (o que, para o verbo em questão, não é viável). Assim, o recurso ao pretérito imperfeito só seria possível caso a frase incluísse outros elementos de localização temporal, como em (3):

(3) «No mês passado, eles partiam para França quando o João chegou.»

Na segunda frase apresentada pela consulente, é possível optar pelo pretérito perfeito do indicativo ou pelo pretérito imperfeito. No primeiro caso, a situação descrita (brincar) inclui-se no intervalo de tempo «ser pequeno» e é perspetivada como um evento de caráter momentâneo ou único:

(4) «Quando era pequeno, brinquei contigo.»

Se se optar pelo pretérito imperfeito, a situação (brincar) é descrita como estando incluída no intervalo de tempo denotado pela oração subordinada («quando era pequeno»), tendo um