Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
132K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Não consigo entender que tipo de ato ilocutório é a frase «O remédio?»

No texto falam da quantidade de bactérias que moram nos nossos automóveis, e os perigos que comportam. No fim do texto o autor escreve: «O remédio?» e propõe uns remédios como limpar o habitáculo, evitar comer dentro da viatura, etc.

Que tipo de ato ilocutório seria esse enunciado?

Resposta:

Embora não tenha acesso direto ao contexto, o que poderá condicionar a interpretação dos enunciados, julgo que a frase apresentada configura um ato ilocutório diretivo.

Os atos ilocutórios diretivos «têm como objetivo tentar que o alocutário realize futuramente uma ação verbal ou não verbal que reflita o reconhecimento, por parte desse mesmo alocutário, do conteúdo proposicional do enunciado proferido pelo locutor.» (Faria in Mira Mateus et al., Gramática da língua portuguesa. Caminho, p.76)

Ora, no caso em análise, ao realizar uma pergunta, o locutor faz um pedido de informação que espera do alocutário uma resposta verbal. Neste caso, como se trata de um recurso expressivo, configurado numa interrogação retórica, é desenvolvido um jogo linguístico em que o locutor constrói um ato ilocutório diretivo a que ele mesmo dá resposta.

Disponha sempre!

Pergunta:

Napoleão Mendes de Almeida, na sua Gramática metódica da língua portuguesa, refere que se repete a preposição em frases como as seguintes:

«O de que muitos começam a duvidar é das suas possibilidades.»

«O de que eu não quero que te esqueças é do sinal da cruz.»

«O de que precisamos é de calma.»

«O por que luto é pela justiça.»

A minha pergunta é esta: seria correto antepor a preposição de ao pronome o? O demonstrativo o nesses contextos desempenha a função sintática de sujeito, sendo assim seria correto ligar a preposição ao sujeito?

«Do que muitos começam a duvidar é das suas possibilidades.»

«Do que eu não quero que te esqueças é do sinal da cruz»

«Do que precisamos é de calma.»

«Pelo que luto é pela justiça.»

Quanto a esta frase: «No que cuido é nos meus deveres» Seria correto dizer: «O em que cuido é nos meus deveres»?

Outra pergunta: Tem razão Mendes de Almeida ao dizer que a preposição se repete, ou seria melhor dizer «O em que cuido são os meus deveres», em que o verbo ser concorda com o predicativo «os meus deveres»?

Gratíssimo ao vosso trabalho

Resposta:

A análise da questão colocada exige antes de mais que se faça a distinção entre duas realidades; a locução pronominal «o que» e a sequência «o que» formada por artigo, usado como “pronome demonstrativo” seguido de que1.

I. Esta última realidade está presente numa frase como (1):

(1) «Adorei o que me aconselhaste.» (Conversa sobre um livro)

Vários dados comprovam que o não faz parte do constituinte relativo:

(i) o é variável em género e número:

            (2) «Adorei os que me aconselhaste.» (conversa sobre livros)      

(3) «Adorei a que me aconselhaste.» (conversa sobre música)    

(4) «Adorei as que me aconselhaste.» (conversa sobre músicas)

(ii) o pode ser substituído por outro determinante como aquele:

            (5) «Adorei aquele que me aconselhaste.»

(iii) o introduz um nome omitido que se recupera pelo contexto:

Mensagens de boas-festas em estimado português
Os erros que não queremos cometer

A época festiva do Natal e a passagem para o novo ano motivam mensagens com votos de felicidades. Porém, também nestes pequenos textos há que estimar o português, como recorda  a professora Carla Marques

Pergunta:

Já me deparei no Ciberdúvidas com uma resposta equiparada à que vos coloco. Sei que é uma expressão que até está registada em textos, mas, mesmo assim, tenho dúvidas quanto ao seu uso nesta frase: «Viu o homem com roupas e comida o suficiente para o seu sustento.»

Pergunto se o uso dessa expressão nominal é legítimo nessa frase.

Obrigado.

Resposta:

Como se refere aqui, o constituinte «o suficiente» é usado como uma locução adverbial, sendo, portanto, uma forma fixa e invariável, com um valor quantificacional.

Enquanto locução adverbial terá sobretudo a capacidade de modificar verbos/grupos verbais:

(1) «Trabalhou o suficiente.»

ou adjetivos:

(2) «Sentia-se velho o suficiente.»

Assim sendo, não parece legítima a sequência «comida o suficiente», uma vez que a locução estaria a modificar o nome comida. Neste contexto, seria expectável o aparecimento do adjetivo suficiente:

(3) «Viu o homem com roupas e comida suficiente para o seu sustento.»

Será possível o uso de «o suficiente» se se introduzir uma vírgula antes deste constituinte:

(4) «Viu o homem com roupas e co...

Pergunta:

Foi já colocada uma pergunta, que teve resposta cabal, sobre a regência de advertir (alguém) de ou para alguma coisa.

Todavia, se o verbo for utilizado de forma "impessoal" numa frase do tipo «As conclusões do relatório advertem [que/de que] a natureza está em declínio a nível mundial», qual a regência correta?

Muito obrigado.

Resposta:

O verbo advertir não tem um uso impessoal, na medida em que seleciona sempre sujeito1.

Este verbo pode assumir diversos comportamentos sintáticos:

 (i) verbo intransitivo: só seleciona sujeito:

            (1) «O João sabe advertir.»

(ii) verbo transitivo direto: seleciona sujeito e complemento direto:

            (2) «O João advertiu a Rita.»

(iii) verbo transitivo direto e indireto: seleciona sujeito, complemento direto e complemento oblíquo:

            (3) «O João advertiu a Rita da sua decisão.»

Nesta última construção, o complemento oblíquo é realizado por um grupo nominal introduzido pela preposição de («da sua decisão»). Este complemento oblíquo pode, todavia, ser realizado por uma oração subordinada substantiva completiva:

            (4) «O João advertiu a Rita (de) que ia sair mais cedo.»

A oração subordinada completiva tem a função de complemento oblíquo, mas a sua introdução por preposição é opcional (como sinalizam os parênteses na frase (4)). Este facto acontece porque, como explica Barbosa, «quando o complemento oblíquo é uma oração finita, a marcação por meio de preposição de não...