Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Vi uma entrevista de Nélida Piñón, notei alguns trechos e resolvi cá transcrevê-los: Nós nos empenhamos para construir uma cultura, uma sociedade que quando estejamos* liberados, sejamos* soberanos de nós próprios, tenhamos uma literatura; e tenhamos uma Academia como a nossa, de Machado de Assis. 1) É possível e correto usar o presente do subjuntivo com valor de futuro? (Estejamos → estivermos; sejamos → formos) 2) Depois das conjunções "se" e "quando" é obrigatório o uso do futuro do subjuntivo, ou são possíveis outras construções? "Se alguém vir esta carta..." Ou Se alguém ver esta carta..."? "Se o sol se pôr" ou "se o sol se puser"? 3) A pontuação está corretamente empregada? Tenho um pouco de dificuldade em transcrever certas falas.

Resposta:

O texto apresentado resulta aparentemente de uma transcrição de uma entrevista oral. Sendo a oralidade caracterizada por hesitações e reformulações que se ficam a dever à formulação instantânea do texto, esta é mais passível de apresentar incorreções.

A frase apresentada pode ser aperfeiçoada na escrita através da introdução de uma preposição antes do pronome relativo que:

(1) «Nós nos empenhamos para construir uma cultura, uma sociedade em que […]»

Para respondermos às questões colocada, comecemos por dividir a frase nas orações que a compõem:

 

(2) «[Nós nos empenhamos para construir uma cultura, uma sociedade]oração subordinante [ [em] que [quando estejamos* liberados]oração sub.adv.temporal, sejamos soberanos de nós próprios, [tenhamos uma literatura]oração coordenada copulativa; [e tenhamos uma Academia como a nossa, de Machado de Assis]oração coordenada copulativa]oração subordinada adjetiva relativa»

 

A questão apresentada no ponto 1) está relacionada com o uso da conjunção quando, que introduz uma oração subordinada adverbial temporal, localizando a situação expressa no interior da oração subordinada relativamente à expressa na oração subordinante (como anterior, simultânea ou posterior). No caso de se pretender marcar uma situação futura relativamente ao tempo da enunciação, o futuro do conjuntivo é geralmente o tempo/modo escolhido. Assim sendo, o verbo da oração subordinada temporal na frase em análise deverá estar flexionado no futuro do conjuntivo:

(2a) «[…] quando estivermos liberados […]»

No que respeita à oração ...

Pergunta:

Congratulo o sítio pelo trabalho extraordinário que tem vindo a realizar e agradeço antecipadamente qualquer comentário e informação sobre o que apresento.

É correto dizer «gravitar em redor / à volta desta história», ou trata-se de um pleonasmo desnecessário, uma vez que gravitar significa «à volta de»?

Será mais adequado «gravitar nesta história»?

Resposta:

O verbo gravitar, na sua aceção no âmbito da Física/Astronomia, pode significar “tender para um ponto determinado, em virtude da força de gravitação”, uso patente em (1):

(1) «[…] a Lua lembra-se por exemplo de cair na Terra, ou esta de gravitar distraidamente para o Sol.» (J.R. Miguéis, Escola do Paraíso. p. 207)

Neste contexto científico, o verbo gravitar pode também ser usado com o significado de «girar continuamente em volta de um ponto», como se verifica em (2):

(2) «Estes quatro pequenos corpos celestes […] gravitam em torno de Júpiter, segundo órbitas parabólicas […].» (P. Botelheiro, «Meteorito», in Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. p. 471)1.

A expressão apresentada pelo consulente ativa este segundo sentido e, neste contexto, é habitual identificar o ponto em torno do qual ocorre a rotação. Assim, não estamos perante uma verdadeira redundância, uma vez que se trata de um constituinte que, embora seja um modificador, ajuda a ativar este sentido particular.

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras que nos endereça.

Ficamos ao dispor!

 

Pergunta:

A frase em baixo está correcta?

«Relativamente ao frio, pouco pode-se fazer.»

Ou será mais correcto:«"(...) pouco se pode fazer»?

Na minha opinião acho que as duas estão bem mas, neste contexto, gosto mais de como soa a última -- gostaria de saber a vossa opinião. (Imagino que algures na base de dados já deva existir resposta para dúvida similar -- desde já, peço desculpa.)

Obrigado e parabéns pelos 23 anos (participo pouco mas conhece-vos desde, pelo menos, 1997!)

Resposta:

Na frase apresentada, o pronome clítico deve ser colocado antes do verbo, ou seja, em posição proclítica.

A colocação não marcada dos pronomes clíticos é a enclítica, isto é, depois da forma verbal, como em (1):

(1) «O manual de procedimento explicou-me como agir.»

Há, contudo, palavras que atraem os pronomes para antes do verbo. Entre elas encontram-se as palavras que expressam quantificação1. Neste grupo, inclui-se o advérbio pouco, que surge na frase apresentada. Este advérbio, quando colocado antes do verbo, atrai o pronome para a posição proclítica, o que se observa no contraste entre (2) e (3):

(2) «Relativamente ao frio, sabe-se como proceder.»

(3) «Relativamente ao frio, pouco se sabe sobre como proceder.»

Pelo exposto, na frase apresentada pelo consulente, o pronome deve ter colocação proclítica:

(4) «Relativamente ao frio, pouco se pode fazer.»

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as suas felicitações com votos de que continue a acompanhar os nossos trabalhos!

Disponha sempre!

 

1. Para maior aprofundamento sobre a ação destas palavras quantificadoras, cf. Martins in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2244 – 2248.

Pergunta:

«Hoje apetece-me comer peixe.»

Nessa frase o pronome há de estar antes ou depois do verbo? Na minha opinião acho que deve estar antes, pois temos um advérbio e não há vírgula.

Escrevo-lhe porque encontrei essa frase em um texto ( escrito por um português) e deixou-me confusa. Qual é a forma correta?

Também gostava de saber se há uma gramática que trate esse tema detalhadamente, pois tenho muita curiosidade.

Obrigada.

Resposta:

Na frase apresentada, em português europeu, o pronome é colocado depois do verbo.

A próclise do pronome, ou seja, a sua colocação antes do verbo, é condicionada por um conjunto de contextos sintáticos: a negação, a quantificação, a focalização e a ênfase.

A operação de focalização é assegurada pelos advérbios focalizadores, que são aqueles que «realçam, de forma diferentes, uma entidade ou grupo de entidades na perspetiva da sua pertença a um determinado conjunto de elementos, que pode ser recuperado através do contexto discursivo»1. Entre estes advérbios encontramos os focalizadores exclusivos (apenas, só, antes …), os focalizadores inclusivos (também, até, mesmo …) e o focalizador de modalidade talvez. Estes advérbios focalizadores, quando colocados antes do verbo, funcionam como atractores de próclise¸ levando à colocação do pronome clítico antes do verbo:

(1) «O João disse-me a verdade.»

(2) «Talvez o João me diga a verdade.»

Assim sendo, uma vez que o advérbio hoje, que integra a frase apresentada, não é focalizador (mas, antes, temporal), não cria um contexto sintático que exija a próclise, pelo que o pronome é colocado após o verbo, em posição enclítica2 3:

(3) «Hoje apetece-me comer peixe.»

Disponha sempre!

 

1. Raposo in Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1667.

2. No caso da variante de português do Brasil, a posição por defeito do pronome clítico é proclít...

Pergunta:

Na frase «Para abordar o assunto do domínio da língua portuguesa sobre os povos, são necessários delicadeza e conhecimento, inteligência e desassombro em dose máxima», qual o valor aspetual e modal presentes?

Resposta:

A frase apresentada integra um texto da escritora Hélia Correia, intitulado Ditosa língua, que foi por ela própria lido na cerimónia de entrega do prémio Camões (que recebeu em 2015), tendo sido publicado no jornal Público em 8 de julho 2015.

Relativamente ao aspeto lexical, a frase expressa um estado (situação estativa), pois descreve uma situação como não dinâmica, sem mudança interna e durativa1.

Quanto ao valor modal, estamos perante uma modalidade epistémica com valor de certeza, uma vez que o locutor manifesta, por meio deste enunciado, o seu «grau de certeza/incerteza […] relativamente à verdade da proposição que produz»2. A frase não configura a modalidade deôntica porque, para que esta esteja presente, é necessário que envolva duas entidades, a que dá a permissão ou expressa a obrigação e aquela sobre quem recaem a permissão ou a obrigação3.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 370-371.

2. Ibidem, p. 630.