A língua já existia antes de cada um de nós e, contudo, sentimo-la nossa. A escrita passou por inúmeras fases, que muitos desconhecem, e foi construída por homens cuja identidade e crenças se perderam na memória. Homens atrás de homens, escritos atrás de escritos, séculos após séculos legaram-nos uma herança que sabemos de todos, que sabemos existir para além de nós, antes e depois, mas que queremos nossa. Não gostamos que nos alterem a ordem das almofadas da sala ou dos livros da biblioteca, porque é a nossa ordem, porque são os nossos objetos. E porque a língua é nossa, de cada um de nós, não gostamos que mexam na nossa língua.
As reações afetivas à mudança que introduz o novo acordo ortográfico têm sido muitas e diversificadas, mas todas passam pela relação umbilical que estabelecemos com a língua na qual nos criamos e através da qual aprendemos a pensar e a exprimir os nossos pensamentos.
Não podemos, porém, esquecer que a ortografia mais não é do que um conjunto de regras que permitem harmonizar a escrita entre os que escrevem numa mesma língua. Racionalmente, a escrita é apenas isto: um conjunto de regras. Estas regras, praticamente inexistentes em tempos idos da história da ortografia, resultam de um percurso que a própria língua seguiu ao longo de muitos séculos. A língua em que hoje escrevemos já se grafou de inúmeras formas: homem já foi omee ou home, erva já foi herba, manhã já foi manhaã ou manháá, céu já foi ceeo e dói, dooe. Até ai já foi ay! Os Lusíadas que lemos hoje não foram escritos com esta ortografia, nem o Sermão de Santo António aos Peixes, nem Os Maias, nem mesmo a Mensagem. A mudança é inerente à própria língua e, consequentemente, à própria ortografia.
Nada do que se vive atualmente é sequer inovador na história da relação dos homens com a sua língua. Sempre houve quem se queixasse de que os utilizadores da língua não a sabiam escrever, sempre houve quem resistisse à mudança. Porque a língua é nossa.
Garrett, no século XIX, no prefácio de Camões, poema inaugural do romantismo, lamentava-se:
«Sôbre a orthographia, (que é força cada um fazer a sua entre nós, por que a não temos) direi só que segui sempre a ethymologia em razão composta com a pronúncia; que acentos, só os puz onde, sem eles, a palavra se confundiria com outra; e que de boamente seguirei qualquer methodo mais acertado, apenas haja algum geral, e racionável em portuguez: o que tam fácil, e simples sería, se a nossa academia, e governo em tam importante cousa se empenhassem».
Almeida Garrett, Camões. 1825.
E quando, em 1911, se publicou a Reforma Ortográfica, da responsabilidade de Gonçalves Viana, as reações afetivas não deixaram de se sentir:
«Na palavra lagryma, (...) a forma do y é lacrymal; estabelece (...) a harmonia entre a sua expressão gráfica ou plástica e a sua expressão psicológica; substituindo-lhe o y pelo i é ofender as regras da Estética. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mistério... Escrevê-la com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformá-lo numa superfície banal.»
Teixeira de Pascoaes, in A Águia, citado por Francisco Álvaro Gomes, O Acordo Ortográfico. Porto, Edições Flumen e Porto Editora, 2008, p. 10.
Temos o direito de lutar pela nossa língua e pela sua manutenção? Temos, porque a língua é nossa! Mas não poderemos esquecer que a mudança é natural, mesmo quando imposta pelos homens. Afinal, a ortografia não foi sempre uma imposição dos homens?
Artigo de opinião originalmente publicado no Correio da Educação, revista digital das Edições ASA, de 25 de novembro de 2011 (aqui transcrito com a devida vénia).