Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «o narrador encena aqueles modos de uma escrita como antídoto» retirado do artigo de Diogo Vaz Pinto disponível em a modalidade que ali se encontra presente é epistémica com valor de certeza ou apreciativa?

Grata pela atenção.

Resposta:

O enunciado apresentado é retirado de uma frase mais longa, que aqui transcrevemos na íntegra:

«E nas suas refracções, nas personagens que se revezam relançando a linha – além de Bernfried Järvi, temos Milo, Matthäus Geschke ou Pagreus –, o narrador encena aqueles modos de uma escrita como antídoto, um talento incerto para abdicar do modo de composição mais verosímil, salvar-nos da esterilidade de um realismo imbecil, para nos entregar a uma desordem enunciativa que é outra forma de reger o mundo, quando, mais do que sentido, do que este precisa é que lhe dêem corda.»1

Nesta frase, a modalidade expressa é a epistémica com valor de certeza.

Na modalidade apreciativa, o locutor apresenta um juízo de valor positivo ou negativo sobre uma situação, ou seja, avalia o conteúdo dos factos que refere. É exemplo da modalidade apreciativa:

(1) «Agrada-me que tenhas escrito este livro.»

Nesta frase, o locutor faz um juízo de valor positivo relativamente à proposição «tu escreveste este livro».

A modalidade epistémica, por sua vez, «prende-se com graus de certeza ou avaliação da probabilidade acerca do conteúdo proposicional da frase.» (Oliveira e Mendes in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian. p. 623). Assim, na frase (2), o locutor exprime a certeza relativamente à verdade da proposição «o livro vai ser um sucesso».

(2) «Estou certo que o livro vai ser um sucesso.»

No caso da frase apresentada pela consulente, não encon...

Pergunta:

O adjetivo quieto pode ser usado com o verbo ser? Por exemplo, a frase «o Manuel é um menino quieto» está correta?

Obrigada.

Resposta:

Na frase em apreciação, o adjetivo quieto não se relaciona diretamente com o verbo ser, incide, sim, sobre o nome menino, formando com ele um sintagma nominal. É este sintagma que se relaciona com o verbo ser com a função de predicativo do sujeito, como se observa na segmentação apresentada em (1), que identifica os constituintes que se relacionam com o verbo:

(1) «[O Manuel] é [um menino quieto].»

O adjetivo quieto pode significar “que não se move; parado” (Dicionário Houaiss), sendo estes sentidos passíveis de serem associados a um nome com traços [+hum], ou seja, que refira a um ser humano. Aliás, de acordo com o dicionário Houaiss, quando este adjetivo significa “que não faz rebuliço, travessuras”, aplica-se especialmente a crianças, pelo que a frase apresentada é correta.

Disponha sempre!

Pergunta:

Carlos Nougué em sua Suma Gramatical da Língua Portuguesa escreve: “

«"Não trabalhava faz dois anos" nem remotamente nos soa correta. E, no entanto, tão incorreta como "Não trabalhava faz dois anos" é "Não trabalhava há dois anos". Pois bem, use-se o verbo fazer ou o verbo haver, não se infrinja nunca o devido paralelismo ou correspondência verbal, e escreva-se corretamente: "Não trabalha há/faz dois anos" ou "Não trabalhava havia/fazia dois anos".»

Apesar de clara, a explicação não contém tantos exemplos. Fiquei, portanto, com certas dúvidas.

Estariam corretas construções como estas – «Aquelas ideias já foram esquecidas há tempos» e «Estive nos Estados Unidos há dois anos»–, porquanto Nougué prefere, por exemplo, «Decorreram dois anos que se casaram» a «Há/Faz dois anos que se casaram», considerando esta última como figura anômala?

Obrigado.

Resposta:

Na tradição gramatical de linha mais tradicional e purista, condenava-se o uso do verbo haver (e do verbo fazer) com valor de expressão temporal em situações em que não concordava com o tempo principal (veja-se nesta resposta a posição de gramáticos como Napoleão Mendes de Almeida ou Vasco Botelho de Amaral). Nesta linha, as frases (1) e (2) estariam corretas dada a concordância temporal do verbo haver com o verbo principal:

(1) «O João trabalhava naquele local havia muitos anos.»

(2) «O João trabalha neste local muitos anos.»

No entanto, atendendo aos usos atuais do verbo haver, nas situações em que expressa um valor de tempo adjunto1, não me parece que se possam considerar incorretos os usos que não se regem pela concordância verbal entre o tempo do verbo principal e o tempo do verbo haver, pelo que será aceitável uma frase como (3) na qual o verbo haver se refere a um evento passado:

(3) «O João trabalhava naquele local há dois anos.»

Aliás, a frequência deste uso parece indiciar um gramaticalização em curso (como o demonstra Móia no estudo aqui disponível). 

Por estas razões, poderemos considerar aceitável a frase apresentada pelo consulente com o verbo flexionado tanto no presente como no pretérito imperfeito:

(4) «Não trabalhava há/havia dois anos.»

Não obstante, note-se que a combinação do tempo do verb...

Pergunta:

Antes de mais, parabéns pelo excelente trabalho realizado neste portal.

A minha questão é sobre a utilização da vírgula numa situação em específico.

Em diversos textos jornalísticos, tenho visto que a vírgula é colocada entre a função de determinada personalidade e o seu nome (exemplo: «Em comunicado, o diretor da Casa-Memória de Camões, António Coelho, refere que...»).

No entanto, já tive professores que me indicaram que a vírgula não deveria ser colocada nestes casos, até porque tinha um valor de restrição (ficando «... o diretor da Casa-Memória de Camões António Coelho refere que...») . Os mesmos professores indicaram, no entanto, que a vírgula deveria ser colocada quando as posições se invertem, isto é, quando surge em primeiro lugar o nome da personalidade e depois a função. Desta forma, a função ganha valor de explicação (exemplo: «Em comunicado, António Coelho, diretor da Casa-Memória de Camões»).

Solicitava uma clarificação sobre este assunto e qual a forma correta de utilização da vírgula.

Obrigado.

Resposta:

A questão colocada envolve duas realidades sintático-semânticas de natureza distinta que têm implicações no uso da vírgula.

Por um lado, temos sintagmas nominais constituídos por um nome próprio nuclear e por um classificador do nome próprio, como se observa em (1):

(1) «O doutor Carlos Manuel»

Os classificadores1 associam-se aos nomes próprios referindo categorias nas quais estes se podem incluir. No caso dos antropónimos (nomes de pessoas), o classificador pode «ser realizado lexicalmente através de hipónimos2 como menino(a), senhor(a), incluindo nomes de profissão como arquiteto(a), doutor(a), engenheiro(a)» (Raposo e Nascimento in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1037). Também podem funcionar como classificadores os nomes de parentesco3. Nestes casos, não há lugar a vírgula entre o classificador e o nome próprio.

 

Por outro lado, temos sintagmas nominais que incluem no seu interior um modificador apositivo, que constitui um comentário ou uma explicação sobre a entidade referida, como acontece em (2) e (3):

(2) «O primeiro rei da dinastia de Avis, D. João I» (a negrito, assinala-se o modificador apositivo)

(3) «D. João I, o primeiro rei da dinastia de Avis» (a negrito, assinala-se o modificador apositivo)

Estes modificadores apositivos têm a característica de serem intersubstituíveis com o nome que modificam, para além de não restringirem ...

Pergunta:

Tenho uma pergunta a respeito do "uso duplo" da partícula se com diferentes funções (primeiro, acredito, como índice de indeterminação do sujeito (ou seria pronome apassivador?) e, em seguida, como parte integrante do verbo (?)). Qual é a forma correta da seguinte frase:

 1.  Deve-se se conformar às leis vigentes.

ou

2. Deve-se conformar-se às leis vigentes.

ou, ainda,

3. Deve-se conformar às leis vigentes. [A opção 3 parece alterar o sentido original da frase].

Conformar-se, aqui, é empregado no sentido de «adequar sua própria conduta a algo».

Muitíssimo obrigada!

Resposta:

As opções apresentadas pelo consulente integram um verbo auxiliar modal (dever), acompanhado do pronome se impessoal. Este auxiliar acompanha o verbo principal conformar-se, no seu uso pronominal.

Numa situação comum, na variante de português do Brasil, com um verbo auxiliar não acompanhado de pronome, seria possível a próclise do pronome do verbo principal:

(1) «Podem se conformar às leis vigentes.»

Este pronome pode mesmo subir a complemento do auxiliar, ligando-se a ele por meio de hífen:

(2) «Podem-se conformar às leis vigentes.»

Esta opção não é válida para o caso apresentado porque tal implicaria a coocorrência do se impessoal com o se reflexo, que são duas formas incompatíveis, como se lê nesta resposta de Carlos Rocha:

(3) «*Deve-se se conformar às leis vigentes.»

Não obstante, gramáticos como Bechara advertem que, nos casos de locução verbal, é possível que o pronome átono se ligue ao infinitivo, surgindo em posição enclítica. Para ilustrar, apresenta como exemplo:

(3) «Eu quero falar-lhe.» (Moderna Gramática do Português. Ed. Nova Fronteira, p. 492)

Ou seja, num uso menos coloquial, a colocação do pronome será semelhante à do português europeu.

De acordo com esta indicação de Bechara, poder-se-ia aceitar como correta a frase (4):

(4) «?Deve-se conformar-se às leis vigentes.»

No entanto, ...