Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
A nossa casa e as portas <br>que se fecham e que se abrem
As metáforas da covid-19 (II)

«Para além do campo conceptual de guerra, das catástrofes naturais, também os conceitos de casa e de interrupção temporal se converteram num espaço mental de interpretação da realidade, que levou à criação de metáforas evocadoras dos conceitos de proteção e defesa, isolamento e suspensão de vida, ausência de liberdade e controlo excessivo.» Esta é uma nova abordagem da  riqueza metafórica  da  lingua portuguesa nestes tempos da pandemia do covid-19, da autoria da professora Carla Marques.

Pergunta:

Numa sentença como «está aparecendo todo o mundo, menos eu», o emprego do pronome reto eu se mostra adequado?

Pergunto isso, porque, nesse contexto, menos funciona como preposição, já que significa «exceto», não?

Obrigado.

Resposta:

A forma nominativa do pronome pessoal está correta.

Na frase apresentada, a palavra menos é considerada uma preposição “atípica”, a par de senão, salvo, exceto e fora1. Estas preposições, em termos semânticos, «servem para excluir uma entidade ou um grupo de um conjunto universal ao qual se aplica a predicação; por outras palavras, servem para apresentar essa entidade (ou grupo) como exceção à predicação veiculada pela frase»2. Assim, na frase apresentada pelo consulente, a preposição menos exclui a entidade referida como eu do conjunto designado como «todo o mundo» e sobre o qual se predica que «está aparecendo», o que não se verifica, portanto, com eu.

Em termos sintáticos, estas preposições têm uma particularidade que as distingue das preposições canónicas: quando se combinam com um pronome pessoal, este não assume a forma oblíqua (mim, ti), antes mantém a forma nominativa (eu, tu), como se observa nos seguintes exemplos:

(1) «Ninguém fala, senão tu.»

(2) «Todos foram, exceto eu.»

(3) «Todos escrevem, salvo tu.»

(4) «Ninguém quer ir, fora eu.»

(5) «Todos ficaram contentes, menos eu.»

Disponha sempre!

 

Pergunta:

«Maria estava mal/bem da cabeça.»

Amigos, recorro mais uma vez a vocês para perguntar-lhes que função sintática exerce o sintagma «da cabeça».

Complemento nominal, talvez?

Resposta:

O caso em apreço é uma frase copulativa na qual o predicador é o sintagma adverbial «mal/bem da cabeça».

Neste caso, o grupo preposicional «da cabeça» estabelece com o advérbio mal/bem uma função de complemento do advérbio, na linha do que está previsto em gramáticas como a Gramática do Português, coordenada por Raposo et al. Como aí se explica, ««Tal como os complementos do nome, do verbo ou do adjetivo, os complementos do advérbio ocorrem à sua direita e completam-lhe o sentido» (Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1583).

Refira-se, porém, que na linha gramatical tradicional brasileira considera-se, de forma indistinta, complemento nominal aquele que é argumento de nome, adjetivo ou advérbio.  Pelo que, neste quadro, justifica-se a classificação de complemento nominal para a função desempenhada por «da cabeça».

Disponha sempre!

 

N.E. Alterou-se a resposta em 27/05 na sequência de uma observação do consulente Fernando Bueno (Belo Horizonte), a quem se agradece a atenção.

Pergunta:

A propósito do termo infodemia – que, salvo erro, só se encontra dicionarizado na Priberam: «Excesso de informação sobre determinado tema, por vezes incorreta e produzida por fontes não verificadas ou pouco fiáveis, que se propaga velozmente (ex.: infodemia de notícias falsas nas redes sociais*).» – já vi a seguinte formulação: «Infodemia de desinformação»

Não haverá aqui conceitos distintos? É que infodemia não é necessariamente desinformação (quando muito pode levar a isso) e a desinformação não é quantificável: é desinforrmação, ponto.

Obrigado.

* Ver aqui explicação.

Resposta:

O nome comum infodemia tem como significado «excesso de informação sobre determinado tema, por vezes incorreta e produzida por fontes não verificadas ou pouco fiáveis, que se propaga velozmente» (Dicionário Priberam). No dicionário enciclopédico Infopédia, define-se o termo como «fluxo excessivo de informações sobre determinado assunto (sobretudo se veiculada por fontes não fidedignas, tornando o esclarecimento mais difícil)». No Dicionário inFormal, é definido como «universo de informação falsas, muitas fake news». E, a Real Academia Galega define-o como «propagación rápida e abundante de información falsa entre as persoas e os medios informativos». No wiktionary, encontramos a seguinte definição «an excessive amount of information concerning a problem such that the solution is made more difficult».

A todas estas definições, oriundas de dicionários diferentes e de diferentes países é comum o traço semântico de «excesso de informação». Alguns associam à palavra também o traço «informações falsas». Ora, se adotarmos esta perspetiva que relaciona os dois traços semânticos à palavra infodemia, a sua combinação com desinformação estabelece uma relação de certa redundância que permite conceber a expressão «infodemia de desinformação» como pleonástica, pois  o significado de desinformação,  «ato ou efeito de desinformar, de suprimir uma informação, de minimizar a sua importância ou de modificar o seu sentido” ou «informação c...

Pergunta:

Exemplo: «a pequena linha azul apareceu devagar *como que* por artes mágicas»

Sugestão: «a pequena linha azul apareceu devagar *como se* por artes mágicas».

Está difundido o «como que», quando faz muito mais sentido (para mim) utilizar a segunda opção, *como se* (fosse)...

Estou certo ou estou errado?, perguntaria o Sinhôzinho Malta (e eu também, já agora).

Obrigado.

Resposta:

No caso apresentado, deve optar-se pela locução «como que». 

De acordo com o Dicionário Houaiss, a locução «como que» indica «uma certa semelhança ou proximidade». Já a locução «como se» pode referir modo (equivalente a «da mesma maneira que») ou condição hipotética (equivalente a «contanto que», «desde que»).

Assim sendo, partindo do princípio que, na frase apresentada pelo consulente, se pretende estabelecer uma semelhança entre a forma como a linha azul apareceu e um fenómeno de magia, deve usar-se a locução «como que».

Se, por outro lado, se se pretendesse destacar que a «linha azul» apareceu do mesmo modo que, por exemplo, uma estrela no céu, já se usaria «como se»:

(1) «A pequena linha azul apareceu devagar como se fosse uma estrela. (=da mesma maneira que apareceria uma estrela).»

Para equacionar outros aspetos relacionados com esta questão, leia-se esta resposta.

Disponha sempre!