Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Agradeço desde já a ajuda e peço desculpa pelo caráter tão vago da minha questão.

Não consigo distinguir o valor de probabilidade do valor de possibilidade. Qual é a diferença? Não consigo entender... E os casos facultados pelas gramáticas que consultei só me baralharam ...

Por exemplo, «talvez», em alguns casos, está associado a um valor e , noutros casos, a outro valor! Há algum "truque" para os distinguir? Como o faço? É que são tão mas tão similares que raramente consigo fazer a distinção.

Agradecido

Resposta:

A questão apresentada enquadra-se no tratamento dos valores da modalidade epistémica, que está relacionada com o grau de certeza / incerteza que o falante expressa relativamente ao conteúdo da sua frase. Esta pode ser associada a três valores: certeza, probabilidade e possibilidade. A distinção entre os valores de probabilidade e de possibilidade não é considerada em todas as gramáticas e, atualmente, não é tratada no ensino secundário, de acordo com o previsto no Dicionário Terminológico. Neste nível de ensino apenas se consideram os valores de certeza e de probabilidade.

Relativamente aos valores, a certeza está presente quando o falante apresenta como verdade o conteúdo da sua afirmação:

(1) «Estou certo que sei a matéria.»

O valor de probabilidade está presente quando o falante expressa a crença na probabilidade do que afirma, ou seja, o conteúdo da sua afirmação é apresentado como uma situação que pode ocorrer:

(2) «É provável que eu saiba a matéria toda.»

A probabilidade é, frequentemente, expressa através dos verbos poder ou dever:

(3) «O João pode ter lido o livro todo.»

(4) «O João deve ter lido o livro todo.»

O valor de possibilidade está presente quando o falante apresenta a situação como algo que pode acontecer, situação relativamente à qual tem, todavia, menos certeza. 

(5) «É possível que eu saiba toda a matéria.»

Pode ser expresso com o auxílio do advérbio talvez:

(6) «Talvez o João saiba toda a matéria.»

A...

Pergunta:

Minha consulta se prende às expressões expletivas do tipo «é que», «é onde», «é quando», das quais se diz que servem a dar ênfase a orações ou a termos de oração.

Observo, entretanto, que, a par da ênfase, tais expressões possam carrear um caráter de exclusividade. Se não, vejamos as seguintes frases:

«A prática da leitura gera conhecimento» (um dos fatores que geram).

«É a pratica da leitura que gera conhecimento» (exclusividade – somente a pratica da leitura, talvez por influência de uma estrutura tal como «Pode-se viajar, podem-se visitar museus ou conhecer pessoas, mas é a prática da leitura que gera conhecimento»).

«A sombra das montanhas de Minas conduz à reflexão» (também ela conduz).

«A sombra das montanhas de Minas é que conduz à reflexão» (somente ela conduz).

«Na praia de Copacabana é onde transitam belas mulheres» (é somente lá que transitam).

«Na praia de Copacabana transitam belas mulheres» (é também lá que transitam, aliás frase mais condizente com a realidade...).

Obs.: Quando de usa o advérbio mais ou o pronome indefinido mais, parece não haver alteração de sentido com o uso da expressão expletiva: «É na praia de Copacabana que transitam as mais belas mulheres»; «É a prática da leitura que gera mais conhecimento».

Gostaria de um exame a respeito, o qual desde já agradeço.

Resposta:

A proposta de interpretação dos valores semântico-pragmáticos revelam sensibilidade na análise das construções envolvidas. Pode, no entanto, ser aperfeiçoada com base em análises já existentes em torno da clivagem em português1.

As construções apresentadas pelo consulente são exemplos de processos de clivagem distintos, como

(i) Clivada canónica:

    (1) «É a pratica da leitura que gera conhecimento.»

(ii) Clivada é que:

     (2) «A sombra das montanhas de Minas é que conduz à reflexão.»

(iii) Pseudoclivada invertida:

     (3) «Na praia de Copacabana é onde transitam belas mulheres.»

Em termos semântico-pragmáticos, as construções clivadas é que (frase (2)) são tipicamente usadas para assinalar o contraste. Em (2), a intenção do locutor será a de indicar que é a sombra e não outro elemento que conduz à reflexão.

Por seu turno, as clivadas canónicas (1) e as pseudoclivadas (3) estão ao serviço da focalização de um constituinte da frase, que, em termos informacionais, ganha relevo com a construção. Não obstante, é também possível que estas construções marquem um foco contrastivo. Relativamente às frases (1) e (3), só a análise do contexto permitirá aferir com maior rigor a intenção que se associa à construção clivada.

Disponha sempre!

 

...

Pergunta:

Gostaria de saber se a vírgula é sempre obrigatória nos casos em que se pretende subentender o verbo, ou se, quando o resultado é dúbio, se pode prescindir dela. Por exemplo:

«Odeio algumas pessoas, como tu, racistas.»

O que se quer dizer é que X odeia algumas pessoas da mesma forma que Y odeia racistas. Mas, com a vírgula a subentender o verbo «odiar» não poderá a frase passar a ideia de que X odeia algumas pessoas, como por exemplo a pessoa Y e racistas?

Poderia ser correcto, neste caso, grafar a frase assim: «Odeio algumas pessoas, como tu racistas»?

Obrigado.

 

O consulente escreve de de acordo com a norma ortográfica de 1945.

Resposta:

A frase apresentada é dúbia, pelo que só o contexto poderia ajudar a uma interpretação.

Não obstante, poderemos dizer que, de uma forma geral, uma oração comparativa não exige uma vírgula a separá-la da oração subordinante, ainda que possa ter um elemento elidido, como se exemplifica em (1)

(1) «Ele fala como a Ana (fala).»

A frase tal como se apresenta (e sem outro contexto) induz uma das seguintes leituras:

(i)

(2) «Odeio pessoas racistas como tu odeias pessoas racistas.»

A colocação das vírgulas, que isolam o constituinte «como tu», pode ir esta leitura, uma vez que sugerem que este é um constituinte deslocado da sua posição natural, que intercala o primeiro termo de comparação, separando o adjetivo racistas do nome que modifica (pessoas).

(ii)

(3) «Odeio pessoas (,) como tu, que são racistas.»

A intenção do locutor poderá ser a de acusar o interlocutor de ser racista.

(iii)

(4) «Odeio algumas pessoas tal como tu odeias alguns racistas.»1

Esta leitura parece ser, todavia, menos natural. Só o contexto a poderá forçar.

Por fim, a solução para evitar todos os equívocos e leituras dúbias que a frase pode gerar passará, eventualmente, pelo recurso a apenas uma vírgula a separar os dois termos da comparação (de modo a barrar a leitura prevista em (3)):

(5) «Odeio algumas pessoas, como tu racistas.»

Na oralidade, a entoação poderia contribuir para desfazer os equívocos que a frase poderá gerar. 

Disponha sempre!

 

Pergunta:

Tomemos a frase:

«A minha avó beija como se estejam bombas a rebentar no quintal.»

Está gramaticalmente correta? Ou é forçoso usar "como se estivessem"?

Muito obrigado.

Resposta:

Na frase apresentada deve usar-se o imperfeito do conjuntivo.

A oração «como se estivessem a rebentar bombas no quintal» é considerada uma comparativa-condicional1, que se caracteriza por ser introduzida pelo conector «como se», que contribui para a expressão dos valores condicional e comparativo, em simultâneo. As orações introduzidas por este conector correspondem a enunciados de valor hipotético ou contrafactual, o que leva a que o imperfeito do conjuntivo ou o pretérito-mais-que-perfeito do conjuntivo sejam os tempos selecionados, pois compatibilizam-se com estes valores:

(1) «Ela fala como se soubesse a verdade (, e talvez saiba).» (valor hipotético)

(2) «Ela escreve como se tivesse aprendido escrita literária (, mas não aprendeu).» (valor contrafactual)

No caso da frase apresentada, a opção correta será a de selecionar o imperfeito do conjuntivo, expressando (eventualmente) um valor hipotético:

(3) «A minha avó beija como se estivessem bombas a rebentar no quintal.»

Disponha sempre!

 

1. Para um maior aprofundamento, cf. Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa. Caminho, pp. 753-754.

Pergunta:

Gostaria de saber se, em frases como as a seguir exemplificadas, o verbo deve ser conjugado no plural ou no singular:

À medida que cidade após cidade iam caindo... / À medida que cidade após cidade ia caindo...

Geração após geração de professores acreditavam que... / Geração após geração de professores acreditava que...

Estudo após estudo demonstrou que... / Estudo após estudo demonstraram que...

Vieram geração após geração de... / Veio geração após geração de...

Obrigado.

Resposta:

Não é possível avaliar claramente se a flexão do verbo, nas frases apresentadas, está relacionada com a construção «N após N», por falta de contexto.

Normalmente, a construção «N após N», de que «geração após geração» é um exemplo, é usada com um valor adverbial, como acontece nas frases retiradas do Corpus do Português, de Mike Davies:

(1) «[…] a feiticeira cotovia que do alto do seu palanque nos gritava que seria como uma chama a consumir-nos, geração após geração, enchendo-nos desta vontade de sermos grandes […]» (in A caça às bruxas – Crónicas da Brilha | Blogue dos Autores (sitiodolivro.pt))

(2) «A sua trama atrai o leitor, seduzindo-o a continuar a ler página após página» (in Refúgio dos Livros: Novidades Quinta Essência: Agosto (refugio-dos-livros.blogspot.com))

Ora, nestes casos, a estrutura «N após N» não está relacionada com a flexão verbal porque não desempenha a função sintática de sujeito, mas sim de modificador (do grupo verbal).

O mesmo pode acontecer nalgumas das frases apresentadas pelo consulente, que não poderemos analisar devidamente porque estas são apresentadas incompletas e fora do seu contexto. Não obstante, em cada uma delas é possível introduzir um constituinte com a função de sujeito (apresentado entre parênteses retos), como se verifica abaixo:

(3) «À medida que, cidade após cidade, [os ditadores] iam caindo […]»

(4) «À medida que, cidade após cidade, [cada ...