Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Sou um estudante do curso de Português e estudo-o há cinco anos na China, mas o conjuntivo[*] ainda para mim esconde muitos mistérios.

Hoje encontrei uma frase: «Queria que a minha família e as pessoas que amo estivessem saudáveis.»

Aqui quer dizer que a família e as pessoas foram saudáveis antes – a minha professora disse-me assim. Ela disse corretamente?

Esta frase tem o sentido de que a família e as pessoas não foram saudáveis antes? E agora o conjuntivo exprime uma hipótese?

 

[* O mesmo que subjuntivo na nomenclatura gramatical brasileira.]

Resposta:

Nesta frase, o imperfeito do conjuntivo associa a situação descrita, que expressa o conteúdo de um desejo, a um valor temporal que se sobrepõe ao valor do verbo da oração subordinante e que se prolonga para além da situação que ele descreve.

Querer é um verbo que exprime um desejo, uma expectativa. Este seleciona o modo conjuntivo na oração subordinada que o completa. Neste caso, podem ocorrer várias combinações entre os tempos verbais do verbo principal e os do verbo subordinado1. Quando o verbo principal se encontra no imperfeito do indicativo e o verbo subordinado no imperfeito do conjuntivo, normalmente, este último localiza a situação descrita na oração subordinada como tendo lugar depois da situação descrita na oração subordinante. Observemos a frase (1):

(1) «O João queria que a Rita terminasse o trabalho.»

Neste caso, a situação descrita como «terminar o trabalho» é localizada num intervalo de tempo posterior ao da situação descrita como «O João queria algo».

No entanto, nalgumas situações, como é o caso da frase apresentada pelo consulente, a situação descrita pela subordinada, sobretudo quando o verbo é estativo, pode permitir uma leitura de sobreposição temporal à situação do verbo principal. Assim, neste caso, o locutor manifesta o desejo de que, no momento em que enuncia a frase (e num momento posterior), as pessoas da sua família e as que ama se encontrem de saúde.

Refira-se ainda que a seleção do pretérito imperfeito na oração subordinante está, sobretudo, ao serviço de um valor modal que expressa uma expectativa do locutor.

Termino dizendo-lhe que o conjuntivo também, por vezes, coloca...

Pergunta:

Sou estudante de português como língua estrangeira.

Tenho uma dúvida sobre a estrutura : quem me/te/lhe/nos/vos/lhes dera + infinitivo.

Qual das seguintes formas é correta :

«Quem te dera viveres numa mansão.» (infinitivo pessoal) «Quem lhes dera viverem numa mansão.» (infinitivo pessoal)

Ou

«Quem te dera viver numa mansão.» (infinitivo impessoal) «Quem lhes dera viver numa mansão.» (infinitivo impessoal)

Pode-se utilizar a forma «Quem ... dera» com todas as pessoas, por exemplo com a forma nos?

Obrigado pela sua resposta.

Resposta:

As duas possibilidades, com infinitivo impessoal ou com infinitivo pessoal, estão corretas.

A seleção do infinitivo pessoal ou impessoal nas orações subordinadas está dependente do sujeito das orações da frase.

Assim, usa-se o infinitivo impessoal (ou não flexionado) nos casos em que o sujeito dos dois verbos da frase é o mesmo:

(1) «Os alunos querem entregar o trabalho hoje.»

O infinitivo pessoal (ou flexionado) é usado quando os sujeitos dos verbos da frase são distintos:

(2) «O professor marcou uma data para os alunos apresentarem os trabalhos.» (sujeito de marcou: o professor; sujeito de apresentarem: os alunos)

O uso do infinitivo impessoal é, pois, aconselhável quando as orações têm o mesmo sujeito. Não obstante, como se explicou nesta resposta, está é uma tendência geral que não impede que, por razões que se prendem, por exemplo, com a focalização de um elemento da frase, se possa recorrer ao infinitivo pessoal. Por esta razão, as frases (3) e (4) são ambas possíveis:

(3) «Os professores marcaram uma data para dar a aula.»

(4) «Os professores marcaram uma data para darem a aula.»

Note-se ainda que na frase (5) a opção pelo infinitivo impessoal está correta porque o verbo entrar assume como sujeito semântico o nome rapazes ou o pronome os. Por existir esta correferência, torna-se desnecessário o recurso ao infinitivo pessoal, embora este seja possível, como se vê em (6):

(5) «O João viu os rapazes (-os) entrar em casa.»

(6) «O João viu o...

Pergunta:

Na frase «Por se reunirem os familiares, tudo ficou bem», a palavra se é pronome reflexivo ou partícula apassivadora?

Como diferenciar se o se é pronome reflexivo ou partícula apassivadora?

Obrigado

Resposta:

Na frase apresentada, a interpretação do pronome se afigura-se dúbia: tanto pode assinalar uma passiva reflexa como ter uma leitura pronominal.

Com efeito, o pronome se pode ter várias funções e surgir em diferentes construções sintáticas:

(i) Pode ser usado como pronome reflexo. Neste caso, o pronome retoma o valor do sujeito da frase, que funciona como seu antecedente, como em (1):

(1) «A Rita viu-se ao espelho.»

Estas construções admitem a paráfrase com a construção «a si próprio»:

(2) «A Rita viu-se a si própria ao espelho.»

(ii) O pronome se pode surgir em passivas reflexas, uma construção em que o verbo, que será transitivo, ocorre sempre na 3.ª pessoa:

(3) «Ouviram-se avisos sonoros na vila.» (= «Alguém ouviu avisos sonoros na vila.»)

Nestas construções, o agente da situação descrita pelo verbo tem uma interpretação indeterminada (equivalente a alguém).

(iii) O pronome se pode ser usado como impessoal, assinalando um traço de indefinição, como em (4):

(4) «Diz-se que vai chover.»

Neste caso não estamos perante uma construção passiva, pois a oração é ativa, como se observa pela possibilidade de paráfrase por (5):

(5) «O João diz que vai chover.»

 Reduzimos, agora, a frase apresentada pelo consulente a (6), para facilitar a análise:

(6) «Os familiares reuniram-se (para conhecerem o testamento).»

Podemos, antes de mais, concluir que (6) e (7) são equivalentes:

(7) «Os familiares foram reunidos para co...

Pergunta:

No seguinte exemplo:

«A promoção da cultura científica visa dar à ciência o mesmo estatuto que possuem saberes como a literatura ou a música»

como devemos classificar as duas palavras destacadas? Campo lexical de «saberes» ou hipónimos de «saberes»?

Obrigada.

Resposta:

As duas classificações são possíveis e, à partida, não se excluem, uma vez que elas correspondem a campos distintos do estudo das relações semânticas entre palavras. O campo lexical pertence ao domínio das estruturas lexicais e a hiperonímia / hiponímia integra as relações de hierarquia.

O significado das palavras é formado por um conjunto de traços semânticos que contribuem para a sua significação. São estes traços semânticos que permitem estabelecer relações entre as diferentes palavras e um determinado domínio conceptual. Assim, palavras como aluno, professor, aula, manual, quadro, giz, sala, intervalo pertencem todas ao domínio conceptual de escola. Esta abordagem do léxico agrupa palavras que estabelecem uma relação temática entre si.

Um tipo de relação semântica de natureza diferente são as relações de hierarquia. Neste domínio, observa-se que há palavras de significado mais geral (os hiperónimos) que englobam palavras de significado mais específico (os hipónimos). Esta relação pode ser testada por meio da construção «Hipónimo É Hiperónimo», que se verifica por exemplo em

(1) «Atum é peixe.»

Este teste permite concluir que a palavra atum se encontra subordinada (é um hipónimo) à palavra peixe, que possui uma significação mais genérica e abrangente dentro de uma determinada área temática (é um hiperónimo).

Campo lexical e relações de hierarquia constituem, portanto, dois domínios distintos de análise semântica das relações entre palavras. Por essa razão, diremos que aluno, professor, aula, manual, quadro, giz, sala, intervalo pertencem ao campo lexical de escola, mas não são hipónimos de escola. A própria aplicação do teste acima referido gera construções semanticamente anómalas:

A família
Neologismos formados a partir de covid
A dinâmica lexical, motivada pela pandemia, tem trazido novas palavras ao léxico português. Em particular, a palavra covid tem gerado uma família de palavras que se vai alargando de tal forma que já se fala em "covidês" (a língua da covid). 
 
Crónica da autora , emitida no programa Páginas de Português do dia 21 de janeiro, na Antena 2.