Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
124K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«Ando sem me mover, falo calado,
O que mais perto vejo se me ausenta»

Nos versos 1 e 2, há presença de paradoxo?

«Falo» no verso 1 e «vejo« no verso 2 constituem uma sinestesia mesmo em versos diferentes?

Obrigado.

Resposta:

Os versos apresentados integram o poema «A uma ausência» de António Barbosa Bacelar (1610-1663). Neles é possível identificar dois paradoxos, não estando presente a sinestesia.

No primeiro verso, podemos considerar a existência de dois paradoxos, uma vez que o poeta explora a oposição de conceitos (e não apenas de palavras), reunindo-os num mesmo conceito, aparentemente contraditório. Com efeito, o sujeito lírico afirma que anda sem se mexer e que fala estando calado.

No segundo verso, não se identifica a presença de um paradoxo, uma vez que o sujeito lírico descreve uma situação em que aquilo que vê desaparece, ou seja, não explora efetivamente uma contradição, mas uma evolução que vai de algo que se deixa ver para algo que desaparece da vista.

Afirma-se no E-dicionário de termos literários, de Carlos Ceia, o seguinte em relação à sinestesia: «Processo estilístico que consiste na associação, pela palavra, de duas ou mais sensações pertencentes a registos sensoriais diferentes. A utilização de tal figura de retórica permite a transposição de sensações, ou seja, a atribuição de determinadas impressões sensoriais a um sentido que não lhes corresponde. Por exemplo, na expressão “aquela cor é gritante”, a perceção visual (cor) como que é ouvida, processo que acentua a intensidade da mesma.»

Assim, de acordo com este conceito, não consideramos que nos versos 1 e 2, o poeta associe sensações diferentes, transpondo característica de uma para outra.

Disponha sempre!

Pergunta:

Visto que o verbo preocupar(-se) rege a preposição com antes de substantivos, a seguinte frase tem de obrigatoriamente ser «Doroteia, na verdade, está preocupada com se Dante não está sentindo sua falta», ou, neste caso, podemos dizer simplesmente «Doroteia, na verdade, está preocupada se Dante não está sentindo sua falta»?

E por qual motivo?

Resposta:

A frase apresentada em (1) poderá não ser aceitável por várias razões.

Antes de mais, a preposição com não coocorre com a conjunção se (introduzindo esta um complemento oracional da preposição):

(1) «*Doroteia, na verdade, está preocupada com se Dante não está sentindo sua falta.»

Por outro lado, esta frase apresenta também uma certa anomalia semântica: o facto de «se Dante não está sentindo sua falta» ser uma oração interrogativa indireta leva a que a sua introdução seja mais natural se acontecer por meio de um verbo de conhecimento ou desconhecimento, como em (2):

(2) «Doroteia, na verdade, não sabe se Dante não está sentindo sua falta.»

Por fim, a preposição com parece ter preferência pela regência de complemento nominais1, o que poderia levar a uma reformulação da frase tal como se apresenta em (3):

(3) «Doroteia, na verdade, está preocupada com o efeito da sua ausência em Dante.»

Quando a  construção «estar preocupado» se associa a complemento oracionais, a preposição em é frequentemente selecionada2:

(4) «Ele está preocupado em ajudar o Dante.»

Relativamente à possibilidade de omissão da preposição, é certo que essa situação acontece sobretudo com a preposição de, como se exemplifica em (4):

(5) «Estou certo (de) que vai chover.»

Tal é possível com a preposição de porque esta tem um valor semântico reduzido, o que não se verifica com a preposição com¸ o que torna a sua omissão pouco aceitável.

Disponha sempre!

 

...

Pergunta:

Gostaria de saber qual a função sintática de conectivos como «nesse cenário», «nesse contexto», «nesse diapasão», «nesse viés», «nessa perspectiva», «nesse âmbito», etc.

Vejo que algumas pessoas os comparam ao conectivo «nesse sentido», classificado por Othon M. Garcia como de valor conclusivo. Contudo, me parece que têm mais um caráter de retomada, de reafirmação, de ligação, semelhante ao da conjunção aditiva e.

Na minha opinião, num argumento lógico, silogístico, esses conectivos estariam mais para juntar as premissas (e) do que para apresentar a conclusão (assim).

Agradeço a todos vocês o excelente conteúdo do site. Parabéns!

Resposta:

A questão colocada relaciona-se não com a função sintática dos conectores, mas com o valor que associam à conexão que asseguram.

Será também importante referir que é sempre difícil determinar o valor de um constituinte fora de um contexto de uso.

Assim, de uma forma geral, poderemos afirmar que os conectores apresentados no primeiro parágrafo da questão determinam o domínio de referência versado no enunciado que introduzem.

(1) «Amanhã, não chove. Nesse cenário, vamos passear.»

(2) «Isto é um problema de física, nesse contexto vamos resolvê-lo.»

Na frase (1), o conector «nesse cenário» enquadra a afirmação «vamos passear» no contexto de não chover, assim como na frase (2), «nesse contexto» abre o domínio de referência da disciplina de física para resolver o problema.

Já o conector «nesse sentido» pode ser usado tanto com um valor semelhante ao dos conectores associados às frases (1)  e (2) como com valor conclusivo, como em (3):

(3) «Queremos salvar as pessoas, nesse sentido, vamos denunciar esta situação.»

Nesta frase, «nesse sentido» introduz um valor conclusivo na medida em que se comporta como os conectores conclusivos típicos que «explicitam uma relação causa-efeito entre dois termos, sendo atribuído ao constituinte afectado pelo conector o valor de efeito ou consequência da situação reportada pelo outro termo» (Gabriela Matos in Mira Mateus, Gramática da Língua Portuguesa. Caminho, p. 569).

Acresce ainda que o facto de «nesse sentido» ser compatível com o conector e sinaliza que os valores destes conectores são distintos:

Pergunta:

Usa-se correntemente a expressão «imagino o que não...» (terá dito, terá custado, etc.)

Gostava de saber qual é a lógica desta expressão, pois o mais correcto parece ser «imagino o que...».

 

O consulente segue a norma ortográfica de 45.

Resposta:

O uso do advérbio não aqui apresentado constitui um caso de negação expletiva1. É uma situação que ocorre com alguma frequência no português na qual a palavra negativa não tem qualquer valor de natureza semântica, não contribuindo para a construção de uma frase negativa. Esta é, antes, usada apenas como marcador enfático, com a função de realçar um dado constituinte da frase. Uma vez que a sua função é apenas fática, estes operadores negativos podem ser retirados da frase sem afetar a sua gramaticalidade.

Relativamente à gramaticalidade destas construções, afirma João Peres na Gramática do Português: «trata-se de construções sobre que é difícil – e talvez imprudente – proferir juízos de gramaticalidade, sendo de admitir, pela sua grande frequência, que já estão legitimadas como marcadores enfáticos.» (pp. 480 – 481)

Nesta mesma gramática são apresentados alguns exemplos desta construção. Transcrevemos três:

(1) «O que eles não terão sofrido para subir aquela montanha!»

(2) «Quantas pessoas eu não conheço que aceitariam este trabalho!»

(3) «Imagino o que não vai ser preciso gastar nestas obras!»

Disponha sempre!

1. Uma palavra expletiva contribui para expressar o reforço de uma ideia ou para lhe associar um valor de ênfase. A construção «é que» é um exemplo de elemento expletivo: «Ele é que sabe.»

Pergunta:

Precisava de ajuda para esclarecer as funções sintáticas presentes na frase "Não percebo nada de informática."

Assim, pedia a vossa colaboração para responder às seguintes questões que surgiram em sala de aula:

1. O constituinte "de informática" é complemento oblíquo e "nada" (assumido como advérbio de quantidade e grau, tal como "muito" e " pouco") é modificador do grupo verbal?

Ou 2. podemos considerar que o complemento direto é a expressão "nada de informática", ainda que não possa ser substituída pelo pronome de complemento direto, (a frase "Não o percebo.", não sendo agramatical, não tem o mesmo significado)?

Parece-me mais ou menos claro que, se omitíssemos um destes constituintes e tivéssemos frases como:

1. "Não percebo nada."

2. "Não percebo de informática."

o constituinte "nada" seria o complemento direto, na frase 1. e "de informática" o complemento oblíquo na frase 2. Ou estarei enganada?

Agradeço, antecipadamente, a vossa colaboração. i

Resposta:

No caso em apreço, o constituinte nada tem a função de modificador do verbo e «de informática» de complemento oblíquo.

Nada é usado na frase como um advérbio de quantidade e grau, na medida em que contribui para “medir a quantidade” do evento veiculado pelo verbo perceber, como aconteceria com outros advérbios da mesma natureza:

(1) «Percebo bastante de informática.»

(2) «Percebo pouco de informática.»

(3) «Percebo imenso de informática.»

No caso apresentado, uma vez que se trata de uma frase negativa, existe uma correlação entre não e nada.

Assim, na frase em apreço, o verbo perceber, usado com o sentido de "saber", é transitivo indireto, regendo a preposição de e pedindo complemento oblíquo. Esta função é desempenhada, neste caso, pelo constituinte «de informática».

Disponha sempre!