Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Como devo dizer: «suscitando a admiração geral pela sua cultura e qualidades» ou «suscitando a admiração geral pelas suas cultura e qualidades»?

Inclino-me para a segunda construção, mas agradeço desde já a vossa ajuda.

 

Resposta:

A opção correta é a que se apresenta em (1):

(1) «suscitando a admiração geral pela sua cultura e qualidades»

Esta deve ser a construção a adotar porque, como explicam Cunha e Cintra, «Quando um só possessivo determina mais de um substantivo, concorda com o que lhe esteja mais próximo» (Nova Gramática do Português. Ed. Sá da Costa, p. 320)

Caso os nomes surgissem invertidos, o determinante sua concordaria com qualidades:

(2) «suscitando a admiração geral pelas suas qualidades e cultura»

Disponha sempre!

Pergunta:

Qual a função sintática «a que houvesse discórdia» na frase «a atitude dele levou a que houvesse discórdia»?

Resposta:

O constituinte «a que houvesse discórdia» desempenha função de complemento oblíquo.

O verbo levar pode ser usado como transitivo indireto, com o sentido de «conduzir a», como se verifica na frase (1):

(1) «Os caminhos levam a Roma.»

Neste caso, o constituinte «a Roma» tem a função de complemento oblíquo.

O mesmo se verifica na frase apresentada pela consulente, na qual a oração completiva desempenha a função de complemento oblíquo. Note-se que uma oração completiva pode desempenhar esta função quando o verbo rege preposição, como se explica nesta resposta 1.

Disponha sempre!

 

1. Para maior aprofundamento da questão das orações completivas oblíquas, leia-se Barbosa in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, ponto 36.6.2 , pp. 1869 - 1873.

Pergunta:

«Uma das grandes diferenças entre a televisão clássica e linear e esta acessível pelo digital é que a primeira era caduca e mortal e a pós-televisão é imortal.»

Tendo em vista a frase acima, objeto de [uma] consulta [anterior], gostaria de saber se é possível a classificação das orações como se segue:

«Uma das grandes diferenças entre a televisão clássica e linear e esta acessível pelo digital» – sujeito;

«que a primeira era caduca e mortal e a pós-televisão é imortal» – orações coordenadas entre si, com função de predicativo do sujeito referido acima.

Seriam orações predicativas coordenadas.

Obrigado.

Resposta:

A proposta de classificação das funções sintáticas presentes na frase apresentada pelo consulente é justa, uma vez que estamos perante uma frase copulativa*.

Assim, «Uma das grandes diferenças entre a televisão clássica e linear e esta acessível pelo digital» tem a função de sujeito e o constituinte «que a primeira era caduca e mortal e a pós-televisão é imortal» a função de predicativo do sujeito.

Este último constituinte é formado por duas orações completivas finitas coordenadas. Não diremos, todavia, que estamos perante uma estrutura predicativa, uma vez que, como adverte Barbosa, «em rigor, não há predicação nestas frases […] a oração completiva, nestes exemplos, não atribui nenhuma propriedade à entidade abstrata representada pelo sujeito, mas limita-se antes a especificar, ou explicitar o próprio conteúdo dessa entidade» (in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1858 [caixa 2]).

Disponha sempre!

 

* Cf. "Um predicativo do sujeito oracional" (12/02/2021).

Pergunta:

Sou um estudante do curso de Português e estudo-o há cinco anos na China, mas o conjuntivo[*] ainda para mim esconde muitos mistérios.

Hoje encontrei uma frase: «Queria que a minha família e as pessoas que amo estivessem saudáveis.»

Aqui quer dizer que a família e as pessoas foram saudáveis antes – a minha professora disse-me assim. Ela disse corretamente?

Esta frase tem o sentido de que a família e as pessoas não foram saudáveis antes? E agora o conjuntivo exprime uma hipótese?

 

[* O mesmo que subjuntivo na nomenclatura gramatical brasileira.]

Resposta:

Nesta frase, o imperfeito do conjuntivo associa a situação descrita, que expressa o conteúdo de um desejo, a um valor temporal que se sobrepõe ao valor do verbo da oração subordinante e que se prolonga para além da situação que ele descreve.

Querer é um verbo que exprime um desejo, uma expectativa. Este seleciona o modo conjuntivo na oração subordinada que o completa. Neste caso, podem ocorrer várias combinações entre os tempos verbais do verbo principal e os do verbo subordinado1. Quando o verbo principal se encontra no imperfeito do indicativo e o verbo subordinado no imperfeito do conjuntivo, normalmente, este último localiza a situação descrita na oração subordinada como tendo lugar depois da situação descrita na oração subordinante. Observemos a frase (1):

(1) «O João queria que a Rita terminasse o trabalho.»

Neste caso, a situação descrita como «terminar o trabalho» é localizada num intervalo de tempo posterior ao da situação descrita como «O João queria algo».

No entanto, nalgumas situações, como é o caso da frase apresentada pelo consulente, a situação descrita pela subordinada, sobretudo quando o verbo é estativo, pode permitir uma leitura de sobreposição temporal à situação do verbo principal. Assim, neste caso, o locutor manifesta o desejo de que, no momento em que enuncia a frase (e num momento posterior), as pessoas da sua família e as que ama se encontrem de saúde.

Refira-se ainda que a seleção do pretérito imperfeito na oração subordinante está, sobretudo, ao serviço de um valor modal que expressa uma expectativa do locutor.

Termino dizendo-lhe que o conjuntivo também, por vezes, coloca...

Pergunta:

Sou estudante de português como língua estrangeira.

Tenho uma dúvida sobre a estrutura : quem me/te/lhe/nos/vos/lhes dera + infinitivo.

Qual das seguintes formas é correta :

«Quem te dera viveres numa mansão.» (infinitivo pessoal) «Quem lhes dera viverem numa mansão.» (infinitivo pessoal)

Ou

«Quem te dera viver numa mansão.» (infinitivo impessoal) «Quem lhes dera viver numa mansão.» (infinitivo impessoal)

Pode-se utilizar a forma «Quem ... dera» com todas as pessoas, por exemplo com a forma nos?

Obrigado pela sua resposta.

Resposta:

As duas possibilidades, com infinitivo impessoal ou com infinitivo pessoal, estão corretas.

A seleção do infinitivo pessoal ou impessoal nas orações subordinadas está dependente do sujeito das orações da frase.

Assim, usa-se o infinitivo impessoal (ou não flexionado) nos casos em que o sujeito dos dois verbos da frase é o mesmo:

(1) «Os alunos querem entregar o trabalho hoje.»

O infinitivo pessoal (ou flexionado) é usado quando os sujeitos dos verbos da frase são distintos:

(2) «O professor marcou uma data para os alunos apresentarem os trabalhos.» (sujeito de marcou: o professor; sujeito de apresentarem: os alunos)

O uso do infinitivo impessoal é, pois, aconselhável quando as orações têm o mesmo sujeito. Não obstante, como se explicou nesta resposta, está é uma tendência geral que não impede que, por razões que se prendem, por exemplo, com a focalização de um elemento da frase, se possa recorrer ao infinitivo pessoal. Por esta razão, as frases (3) e (4) são ambas possíveis:

(3) «Os professores marcaram uma data para dar a aula.»

(4) «Os professores marcaram uma data para darem a aula.»

Note-se ainda que na frase (5) a opção pelo infinitivo impessoal está correta porque o verbo entrar assume como sujeito semântico o nome rapazes ou o pronome os. Por existir esta correferência, torna-se desnecessário o recurso ao infinitivo pessoal, embora este seja possível, como se vê em (6):

(5) «O João viu os rapazes (-os) entrar em casa.»

(6) «O João viu o...