Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual das seguintes formas é a correta? De forma a as pessoas poderem passar, temos de desimpedir o caminho. De forma às pessoas poderem passar, temos de desimpedir o caminho. A preposição de não se contrai com artigos quando seguida de formas verbais no infinitivo. Acontece o mesmo com a preposição a?

Muito obrigado pela vossa atenção.

Resposta:

A opção correta é aquela em que a preposição a não contrai com o determinante artigo definido.

Com efeito, a preposição não contrai quando encontra um pronome pessoal ou um determinante que inicia uma oração com um verbo no infinitivo, como acontece em (1) ou (2):

(1) «O facto de o exame já ter começado descansa-me.»

(2) «Por o João não apresentar hoje o trabalho, teremos de fazê-lo nós.»

Neste mesmo contexto, com a preposição a a contração também não se faz na escrita, embora na oralidade seja comum1. Assim, a frase correta será a que se transcreve em (3):

(3) «De forma a as pessoas poderem passar, teremos de desimpedir o caminho.» (Na oralidade, é possível que se diga «De forma às pessoas…»)

Disponha sempre!

 

1. Para mais informação, cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1506-1510.

Pergunta:

Em «Completam-se hoje 42 anos sobre o dia em que regressei a Lisboa, depois de 10 anos de exílio […]. Pisar o chão de Lisboa no dia 2 de maio de 1974 foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida. […]», há inferências deíticas espaciais?

Se há, quais?

Agradecido

Resposta:

As inferências deíticas realizam-se quando há necessidade de preencher uma determinada referenciação de informação relacionada com locutor/interlocutor, espaço ou tempo. Estes processos cognitivos são desencadeados quando o texto não tem presente a informação relacionada, nesse caso, com a referenciação deítica.

Assumindo esta noção de inferência deítica, poderemos considerar que a segunda frase apresentada permite a recuperação de um deítico espacial equivalente a ali, uma vez que o locutor se coloca, através do seu enunciado, nesse espaço. A apresentação de uma referência espacial extratextual explícita permitirá, por inferência, recuperar o deítico ali.

Disponha sempre!

 

À volta da cassete e dos empréstimos
Dos galicismos que vieram para ficar

Como afirma a professora Carla Marques, «galicismos há que entraram, de forma mais ou menos discreta, na língua e foram ficando». A partir da palavra cassete, e a propósito do falecimento do seu inventor, o holandês Lou Ottens,  recordam-se alguns dos muitos casos de empréstimos ao francês.

Pergunta:

Gostaria ainda da vossa opinião sobre estas expressões:

– «Esta doença cursa com diarreia, vómitos...» («cursa com»?) Não será melhor «evolui com»? «Manifesta-se com...»?

«O Sr. João foi diagnosticado com melanoma» («o melanoma foi utilizado para diagnosticar»?) Não será melhor: «ao Sr. João foi-lhe diagnosticado um melanoma»?

Grato.

Resposta:

O verbo cursar pode ter um uso intransitivo (no qual não pede complementos), com o sentido figurado de “transcorrer, desenvolver-se, correr” (Dicionário Houaiss):

(1) «Segundo o assessor, as políticas cursavam satisfatoriamente.» (exemplo apresentado no Dicionário Houaiss)

No Dicionário Priberam, o verbo cursar é inclusive apresentado como termo médico, sendo usado com o sentido de “ocorrer ou desenvolver-se acompanhado de algo”. Aí, apresenta-se como exemplo a frase que transcrevemos em (2):

(2) «A malária pode cursar com graves complicações cerebrais, renais, pulmonares, hematológicas, circulatórias e hepáticas.»

Por esta razão, concluímos que a frase apresentada pelo consulente é possível e está prevista no dicionário como construção da área da medicina.

Já o verbo diagnosticar tem o significado de “fazer diagnóstico de” (Dicionário Houaiss). A sua construção semântica implica que existe um agente que executa a ação de identificar a existência de uma determinada situação, como em (3):

(3) «O médico diagnosticou a doença ao João.»

Uma vez que o verbo diagnosticar é transitivo, pode surgir numa construção passiva:

(4) «A doença foi diagnostica pelo médico ao João.»

Esta construção passiva pode ocorrer com omissão do agente da passiva:

(5) «A doença foi diagnosticada ao João.» = «Ao João foi diagnosticada a doença.»

O particípio do verbo diagnosticar pode também ser usado como particípio ...

Pergunta:

Em «a nobreza e pessoas de fortuna utilizavam adereços e substâncias aromáticas como forma de mascarar as suas imperfeições e criar uma imagem de sublimidade, beleza e até de semelhança a(os) deus(es).», a oração introduzida por «como» é subordinada adverbial comparativa ou final? Porquê?

Agradecido pelo ímpar apoio.

Resposta:

O constituinte «como forma de mascarar as suas imperfeições e criar uma imagem de sublimidade, beleza e até de semelhança a(os) deus(es)» inclui um grupo nominal que tem a função de modificador do grupo verbal. Este apresenta, no seu interior, uma oração com a função de complemento do nome.

Tradicionalmente, as orações introduzidas pela conjunção como são classificadas como subordinadas adverbiais comparativas.

No entanto, alguns gramáticos têm vindo a propor que este tipo de orações seja classificado como oração subordinada adverbial de modo. Entre os argumentos apresentados para justificar esta classificação, encontra-se o facto de estas orações surgirem na mesma posição que um advérbio de modo:

(1) «As pessoas usam as máscaras como lhes ensinaram.» = «As pessoas usam as máscaras mal.»

Não obstante, não é esta a situação gramatical que se encontra na frase apresentada pelo consulente, pois a conjunção como não introduz, neste caso, uma oração, mas antes um grupo nominal, que tem o nome forma como elemento central. Apresentamos, em baixo, a frase dividida de acordo com as funções sintáticas dos seus diferentes constituintes:

(2) «[A nobreza e pessoas de fortuna]sujeito [utilizavam [adereços e substâncias aromáticas]complemento direto [como forma [de mascarar as suas imperfeições e criar uma imagem de sublimidade, beleza e até de semelhança a(os) deus(es)]complemento do nome]modificador do verbo]predicado

Como se pode observar, a oração infinitiva que a frase inclui não se relaciona diretamente com o verbo, mas sim com o nome forma, assumindo a função de complemento desse nome.

Disponha sempre!