Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber qual a função sintática da palavra financeira na seguinte frase:

«D. Fernando (...) teria recebido dele um país em excelente condição financeira.»

A dúvida é se se trata de um modificador restritivo do nome ou de um complemento do nome.

Muito obrigada.

Resposta:

No caso em apreço, o adjetivo financeira desempenha a função de modificador de nome restritivo.

No contexto em que surge, o nome condição é independente, ou seja, não pede um complemento que complete o seu sentido. Por esta razão, o adjetivo financeira, ao juntar-se ao nome, vai restringir o seu significado, tal como aconteceria com outros adjetivos:

(1) «condição física»

(2) «condição espiritual»

(3) «condição intelectual»

Deste modo, concluímos que tanto financeira como os adjetivos presentes nas frases (1) a (3) desempenham a função de modificadores do nome restritivo.

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «[...] homem magro, pálido, com aspeto de quem não vai ter muita vida para viver», que função sintática desempenha «de quem não vai ter muita vida para viver»?

Complemento do nome?

Por que razão «aspeto» pede complemento?

Em que categoria de nome se integra para o pedir?

Grata.

Resposta:

O constituinte «de quem não vai ter muita vida para viver» desempenha a função de complemento do nome aspeto.

Várias são as razões que poderemos aduzir para justificar a classificação anterior. Antes de mais, recordemos que na classe dos nomes distinguimos os nomes independentes dos nomes dependentes. Estes últimos «denotam tipicamente entidades do mundo que só podem ser apreendidas quando postas em relação com outras entidades»1. Vários são os exemplos de nomes dependentes que se poderão apresentar. Eis alguns deles:

(1) «amigo (de alguém)»

(2) «autor (de uma obra)»

(3) «casamento (de alguém com alguém)»

(4) «consequência (de algo)»

(5) «fatia (de bolo)»2

No caso do nome aspeto é particularmente evidente que, no contexto frásico em que surge, se comporta como nome dependente, pedindo, portanto, um argumento que complete o seu sentido. Daí a estranheza de (6):

(6) «?Era um homem magro, pálido, com aspeto»

O nome aspeto necessita de um constituinte que lhe permita denotar a relação entre duas entidades, pelo que terá como estrutura:

(7) «aspeto de algo/alguma coisa»

(8) «aspeto de alguém»

Recorde-se ainda que os argumentos dos nomes dependentes desempenham a função de complementos do nome e poderão corresponder a sintagmas preposicionais, pronomes possessivos ou orações (normalmente introduzidas por preposição).

Não existe uma tipologia que descreva de forma exaustiva as subclasses sintáticas e semânticas de nomes dependentes, pelo que nem sempre é fácil proceder a uma análise por meio do enquadramento de um nome numa dada subclasse. Não obsta...

Pergunta:

Em «itinerário da viagem», «da viagem» é um complemento do nome ou um modificador do nome restritivo?

Resposta:

O constituinte «de viagem» é, no caso em apreço, um complemento do nome.

O nome itinerário refere os «sítios por onde se passa ou para ir de um lugar até outro»1. Por esta razão, o constituinte «de viagem» completa o nome, expandindo a ideia de movimento no espaço, uma noção que, de certo modo, já se encontra em parte no nome itinerário.

Veja-se como em construções como «itinerário principal» ou «itinerário acidentado», os adjetivos já não expandem o nome, constituindo, portanto, elementos com a função de modificador do nome.

Disponha sempre!

 

1. Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa. 

Pergunta:

Devemos escrever «tocar de leve» ou «tocar ao de leve»?

Alguns dicionários dão a entender que são expressões sinónimas. Curiosamente, julgo que ninguém diz «tocar de leve», mas por outro lado não percebo o sentido deste «ao».

Muito obrigado.

Resposta:

Com efeito, tanto o dicionário Priberam como o Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências, consideram que as expressões são equivalentes.

No Corpus do Português, de Mark Davies, encontramos registos de uso das duas construções em autores clássicos. Estas surgem associadas, com frequência, a verbos de movimento que envolvem algum tipo de contacto físico [tocar, acariciar, pousar, passar (a mão), bater, roçar, beijar...], pelo que parece atestado o uso equivalente das duas construções.

«Ao de leve» é uma locução adverbial cristalizada, pelo que a preposição a, que a encabeça, não é regida pelo verbo da frase, como se pode observar pelas possibilidades de construção com o verbo tocar:

(1) «tocar ao de leve»

(2) «tocar de leve»

(3) «tocar levemente»

(4) «tocar com leveza»

Não nos é possível determinar a origem histórica da locução «ao de leve», mas poderemos aventar que a preposição a poderá ter aqui um valor metafórico associado à transferência de movimento de um agente para um destinatário1, um valor que a preposição assume com alguma frequência.

Disponha sempre!

 

1. cf. Raposo e Xavier in Raposo et al., Gramática do português. Fundação Calous...

Pergunta:

 Ouço, com muita frequência, várias pessoas (algumas consideradas "cultas") utilizarem as palavras embalagem e embalo como sinónimas no sentido de movimento.

Para mim nada têm em comum.

Pergunto: estarei errada?

Grata pela atenção dispensada.

Resposta:

Em determinados contextos, as palavras poderão ser usadas com um sentido equivalente. Todavia, têm também sentidos próprios e específicos.

O nome embalagem poderá descrever tanto o «ato de ganhar velocidade, de acelerar, de embalar» como a «capacidade de agir ou executar algo rápida e sequencialmente; velocidade na execução de algo»1 (uso informal).

Por sua vez, o nome embalo tem significados como a «ação ou resultado de embalar» ou o «movimento de vaivém lento e regular». Em usos informais, também pode significar «capacidade de agir ou executar algo rápida e sequencialmente; velocidade na execução de algo»1, uso equivalente ao de embalagem.

Em construções como «tomar embalagem; ganhar embalagem», o nome embalagem assume o sentido de «ato de ganhar velocidade, de acelerar, de embalar»1. O nome embalo também pode ter associada esta mesma ideia de movimento.

Disponha sempre!

 

1. Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa