Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Seria possível confirmarem-me se na frase «O problema, dizia Benito, era que não tinha os papéis em ordem», a palavra que é uma conjunção subordinativa completiva com a função sintática de predicativo de sujeito.

Tenho colegas que consideram que é um pronome relativo, mas eu não considero que haja antecedente.

Muito obrigada pela ajuda!

Resposta:

Nesta frase, identificamos a presença de uma oração subordinada substantiva completiva, que se transcreve em (1):

(1) «que não tinha os papéis em ordem»

Esta oração desempenha a função sintática de predicativo do sujeito e é introduzida pela conjunção subordinativa completiva que.

Note-se, todavia, que estas estruturas são construções particulares que não podem ser colocadas no mesmo plano dos grupos de palavras que desempenham a função de predicativo do sujeito. Com efeito, tal como afirma Barbosa, «em rigor, não há predicação nestas frases […] a oração completiva, nestes exemplos, não atribui nenhuma propriedade à entidade abstrata representada pelo sujeito, mas limita-se antes a especificar, ou explicitar o próprio conteúdo dessa entidade»1.

Disponha sempre!

 

1. Raposo et al., Gramática do PortuguêsFundação Calouste Gulbenkian, p. 1858 [caixa 2].

Pergunta:

1) Quem tem experiência, é experiente.

2) Quem tem maturidade, é maduro(a).

3) E quem tem mentalidade, é o quê no caso?

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Nem sempre a língua dispõe de recursos que estabeleçam uma relação simétrica ou homogénea entre palavras da mesma família.

Assim, se entre os substantivos e adjetivos inteligênciainteligente e experiênciaexperiente, existe uma relação na qual o adjetivo adquire um valor de possuidor (inteligente é o que tem inteligência e experiente, o que tem experiência), o mesmo não se verifica entre o substantivo mentalidade e o adjetivo mental. Este último tem na sua base o valor de «relativo a mente» e pode ainda ser usado com valores como «que se processa na mente, no intelecto, sem manifestação escrita ou oral» ou «relativo a ou afetado por desordem ou desequilíbrio da mente». Não dispõe a língua de um adjetivo que descreva um valor de «posse relativa a mentalidade. Deste modo, a solução será optar por uma formulação que descreva o que se pretende dizer de forma mais perifrástica, como «X é uma pessoa com mentalidade de/para […]»

Disponha sempre!

Pergunta:

No verso «só se ouvia uivar o vento», para além da aliteração, poderemos considerar que ocorre uma personificação? Ou outro recurso? 

Resposta:

Poderemos, eventualmente, considerar a presença de um animismo.

Visto que o verbo uivar descreve o ato de «soltar uivos»1, próprio de animais, será mais adequado considerar que, no verso em apreço, estamos perante um animismo e não uma personificação. Ao passo que esta consiste na atribuição de características humanas a seres inanimados, o animismo consiste na atribuição de propriedades animadas, não humanas, a seres inanimados.

Disponha sempre!


1. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha]

Pergunta:

Um amigo me disse que "musas inspiradoras" é pleonasmo vicioso/redundância viciosa, mas não sei mais se "musas inspiradoras" é pleonasmo estilístico/redundância estilística, pleonasmo vicioso/redundância viciosa ou não pleonasmo/não redundância!

O que vocês entendem do assunto todo no caso então?

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

O pleonasmo vicioso é um vício de linguagem que consiste numa repetição de termos ou ideias que não está ao serviço do reforço ou clarificação da mensagem. Este tipo de pleonasmo é considerado um erro de expressão, pois não acrescenta informação nova e torna a comunicação menos clara e fluida. Eis algumas construções normalmente apontadas como exemplos típicos de pleonasmo vicioso:

(1) «subir para cima» (o ato de subir já implica ir para cima) 

(2) «entrar para dentro» (o ato de entrar já implica ir para dentro) 

No caso particular da expressão «musa inspiradora», recordemos que o nome musa pode designar uma das nove deusas, filhas de Zeus e Mnemósine, que dominavam a ciência universal e presidiam as artes liberais e que, segundo a mitologia grega, eram, originalmente, ninfas que habitavam os bosques e as adjacências de rios e fontes1. Este mesmo nome pode também ser usado para referir «qualquer ser ou entidade, dotado de características divinas, que inspira as artes, especialmente a poesia, as letras, a literatura»1. Por seu turno, o adjetivo inspirador significa «que ou o que inspira para o trabalho artístico ou científico»1.

Deste modo, poderemos concluir que se o termo musa referir uma deusa em particular, a expressão «musa inspiradora» não será redundante. Todavia, se musa for usado na aceção mais geral, a sua combinação com o adjetivo inspiradora já será redundante, pelo que é de evitar.

Apesar do que ficou dito atrás, em contextos literários, nos quais se procura explorar a expressividade linguística, a construção «musa inspiradora» poderá não constituir um pleonasmo vicioso, sendo antes um pleonasmo estilístico utilizado para reforçar expressivamente uma dada ideia que ...

Pergunta:

Agradecia que me indicassem o ato de fala presente em  «Falo do tempo e de pedras, e, contudo, é em homens que penso« (José Saramago, A Bagagem do Viajante, 8.ª ed. Editorial Caminho, 2010, pp. 223-225).

Resposta:

Os atos de fala constituem ações linguísticas que têm lugar através de um dado enunciado que um locutor dirige a um dado ouvinte num determinado espaço e num determinado tempo. Este enunciado é sempre associado a uma intenção comunicativa com uma determinada força ilocutória (informar, exclamar, pedir…). Um ato de fala é composto por três atos: o ato locutório, que corresponde ao enunciado pronunciado na sua materialidade linguística; o ato ilocutório, que corresponde ao ato realizado pelo locutor quando pronuncia um determinado enunciado; o ato perlocutório, que corresponde ao efeito produzido por um ato ilocutório.

No caso da frase apresentada, podemos centrar a nossa atenção no ato ilocutório nela presente. Trata-se do ato ilocutório assertivo. Este atos caracterizam-se pelo facto de o locutor expressar a crença na verdade do conteúdo proposicional do enunciado produzido. No caso da frase em apreço, a crença do locutor reside no facto de afirmar que fala de tempo e pedras, mas pensa em homens.

Disponha sempre!