Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem quanto ao valor aspetual configurado no seguinte enunciado:

«O João começou a fazer os trabalhos de casa depois do almoço.»

A minha dúvida prende-se com o valor aspetual presente no complexo verbal «começou a fazer».

Por um lado, parece poder ser imperfetivo; mas a utilização do pretérito perfeito deixa-me a pensar se deverá ser considerado perfetivo.

Obrigado.

Resposta:

O valor aspetual presente na frase em apreço é o imperfetivo.

Um dos elementos distintivos entre os valores perfetivo e imperfetivo está relacionada com a forma como estes perspetivam a situação. Assim, o valor perfetivo apresenta a situação como estando completa, descrevendo-a na sua totalidade. Já o valor imperfetivo apresenta a situação como incompleta, perspetivando-a sem olhar ao todo e, normalmente, numa das suas fases: início, decurso ou fim.

Assim, na frase apresentado pelo consulente, constatamos que o complexo verbal «começou a fazer os trabalhos» veicula uma visão da situação no seu início, não existindo informação sobre um estado de completude. Deste modo, estamos perante a configuração do aspeto imperfetivo.

Disponha sempre!

«Quem com porcos anda, farelo come»
Significado do provérbio

No desafio semana, a professora Carla Marques explora a significação do provérbio ««Quem com porcos anda, farelo come» (apontamento divulgado no programa Páginas de Português, na Antena 2, de 01/06/2025) .

Pergunta:

Gostaria de saber se a palavra "contactante" existe na língua portuguesa.

Encontrei no site da Priberam, mas não existe em mais nenhum...

Obrigado.

Resposta:

O adjetivo contactante é uma palavra bem formada e já tem, com efeito, verbete no Dicionário Priberam.

Contactante significa «que ou quem faz contacto» e forma-se a partir da junção do sufixo -nte à base verbal contacta-, tal como acontece com outras formas adjetivas que indicam o agente de uma determinada ação: visitante ou amante, por exemplo. 

Este termo entrou já há mais tempo na variedade do português do Brasil, como atesta a sua presença em diversos dicionários brasileiros. No entanto, é possível também assinalar a sua presença em usos de português europeu, embora estes pareçam menos frequentes.

Eis alguns registos, identificados no Corpus do Português, de Mark Davies:

(1) «[...] disse à agência Lusa que "o alerta foi dado via 112 e que o contactante informou que, [...]» (RTP)

(2) «[...] um telefone atende o contactante com base num rígido e singelo algoritmo [...]» (Diário de Notícias)

Pergunta:

Tenho uma pergunta sobre a preposição usada com o substantivo viagem. Estou a aprender português e, com muita frequência, tenho dúvidas nesse aspeto (na utilização de preposições depois de substantivos).

Encontrei algumas páginas aqui, no Ciberdúvidas, sobre a regência do verbo viajar. Pelo que entendi, devemos usar sempre a preposição para depois deste verbo (não importa se a estadia é de longa ou de curta duração). Mas qual é a situação com o substantivo viagem? Devo dizer «Pretendo fazer uma viagem à Alemanha em agosto», ou «Pretendo fazer uma viagem para a Alemanha em agosto»?

Agradeço antecipadamente a vossa ajuda!

Resposta:

Há várias possibilidades de uso de preposição com o nome viagem.

Recordemos, antes de mais, que, para além da preposição para, o verbo viajar pode construir-se também com as preposições combinadas «de…para»:

(1) «Ele viajou de Lisboa para Madrid.»

Também se pode usar com a preposição por:

(2) «Ele viajou por locais exóticos.»

Com o nome viagem, é possível também usar diversas preposições, como a combinação «de…a»:

(3) «A viagem de Lisboa a Madrid foi calma.»

ou a combinação «de…para»:

(4) «A viagem de Lisboa para Madrid foi calma.»

Viagem pode ser usado apenas com a preposição a (5), apenas com a preposição para (6), apenas com a preposições por (7) ou até com a locução adverbial «através de» (8):

(5) «O livro fala da viagem à lua.» (à = contratação da preposição a com o artigo definido a)

(6) «A ação decorre numa viagem para o Algarve.»

(7) «Fez uma viagem por Lisboa.»

(8) «Era uma perigosa viagem através da savana.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Sou professora de português do 2.º ciclo e precisava da vossa ajuda na seguinte situação: no passado ano letivo (5.º ano) começou a aparecer nos manuais escolares a interjeição como classe de palavras e como recurso expressivo.

Parece-me estranho porque no mesmo livro acabamos por ter um termo – interjeição – associado a dois conteúdos diferentes. Esta situação causa alguma confusão na cabeça dos alunos. Gostaria de saber se, do ponto de vista científico, é correto existir esta situação.

Muito obrigada.

Resposta:

A interjeição, como aliás outras classes de palavras, pode ser analisada do ponto de vista da sua inserção numa das classes em que se organizam as palavras de uma língua. Neste campo, note-se que a consideração da interjeição como uma classe de palavras a par do nome, do verbo ou do adjetivo não é pacífica entre os gramáticos. Com efeito Cunha e Cintra afirmam: «Não incluímos a interjeição entre as classes de palavras pela razão aduzida à página 78.» e, mais à frente, «Com efeito, traduzindo sentimentos súbitos e espontâneos, são as interjeições gritos instintivos, equivalendo a frases emocionais.» e mais à frente «Não incluímos a interjeição entre as classes de palavras pela razão aduzida no capítulo 5.»1

No Dicionário Terminológico, a interjeição é apresentada como uma classe de palavras, com a seguinte descrição: «Palavra invariável que pertence a uma classe aberta. Uma interjeição não estabelece relações sintácticas com outras palavras e tem uma função exclusivamente emotiva. O valor de cada interjeição depende do contexto de enunciação e corresponde a uma atitude do falante ou enunciador.»

Como se observa, a definição da classe da interjeição assenta em critérios de natureza semântico-pragmática.

Até em coerência com as descrições apresentadas, verifica-se que é possível analisar as interjeições do ponto de vista dos recursos linguísticos que têm uma função expressiva no plano textual. Partindo deste ângulo de análise, podemos identificar num texto a função expressiva da interjeição. Recordemos, apenas a título de exemplo, a importância da interjeição como recurso de expressividade na Ode triunfal de Álvaro de Campos:

 

Ah, poder expr...