Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Pode um sítio ser simpático? E um objecto? É a simpatia exclusiva dos seres vivos?

Conheço uma pessoa que regularmente afirma «este sítio é simpático» ou «este jantar é simpático», mas não consegue clarificar exatamente o que isso significa. Gera-se então a discussão do que significa ser simpático e se pode ser aplicável a lugares e objectos inanimados.

dicionário Priberam define simpático como «que inspira simpatia». Consigo conceber que isso se aplique a um local (mas não uma refeição) até ler a definição de simpatia no mesmo dicionário: «Sentimento de atração moral que duas pessoas sentem uma pela outra.» Esta definição nem dá latitude para animais serem simpáticos (discutível), mas parece de todo fechar a porta a objetos. Isto é, até ler a definição de moral: «Não físico nem material (ex.: estado moral). = ESPIRITUAL.» Um sítio pode invocar uma atração espiritual, mas se formos por este caminho temo que já nos estejamos a afastar demasiado do cerne da questão.

Recapitulando: pode a palavra simpático ser aplicada a seres não vivos?

Resposta:

O adjetivo simpático pode surgir em construções aplicado a entidades não humanas.

O adjetivo simpático deriva do nome simpatia e dele herda os traços semânticos que, nas aceções mais gerais, contribuem para a descrição de uma «afinidade moral, similitude no sentir e pensar que aproxima duas ou mais pessoas»1. Também pode descrever uma «impressão agradável, disposição favorável que se experimenta em relação a alguém que pouco se conhece»1 ou referir uma «pessoa que costuma ser agradável, delicada, afável»1. Podemos, assim, concluir que simpatia/simpático nas aceções denotativas previstas nos dicionários se aplica a entidades humanas.

No entanto, na língua, é possível recorrer a processos de extensão semântica, mais ou menos criativos, que permitem usos que à partida não estavam previstos. Estes procedimentos podem ocorrer, por exemplo, por meio de recursos expressivos que exploram usos criativos da linguagem. Tal pode ocorrer com o adjetivo simpático, que, por exemplo, por meio da construção de uma hipálage2, pode ser aplicado a entes não humanos. Tal acontece porque este recurso permite a transferência de uma característica humana para um animal ou objeto. Neste contexto, no Corpus do Português, de Mark Davies, na secção histórica, os usos do adjetivo simpático aplicado a diversas realidades estão bem documentados, o que mostra que nem sequer estamos perante um modismo recente:

(1) «Trazia um vestido simples, simpático, alegre, um grande avental claro – e os dentes brancos s...

Pergunta:

Gostaria de saber se o verbo ligar pode ser usado como intransitivo na frase seguinte que aparece nas instruções de utilização de um dispositivo médico.

«Desligue o dispositivo e ligue novamente.»

Na minha opinião, nesta frase falta o objeto direto e, por isso, deve ser alterada da seguinte forma: «Desligue o dispositivo e ligue-o novamente.»

Muito obrigada pela resposta!

Resposta:

O verbo ligar, usado com o sentido de «pôr em funcionamento», é transitivo direto, pelo que deve ser acompanhado de um constituinte com a função de complemento direto.

Deste modo, na frase em questão, deverá ser usado o pronome -o:

(1) «Desligue o dispositivo e ligue-o novamente.»

O verbo ligar pode ser usado intransitivamente com o sentido de «combinar» (2) ou de «telefonar» (3):

(2) «A saia e o casaco não ligam.»

(3) «Sempre que quiser, pode ligar.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Como classificar a expressão «como um salvador» em «ele foi imaginado como um salvador»?

Resposta:

No caso em apreço, o constituinte «como um salvador» tem a função de predicativo do sujeito.

A frase transcrita em (1) é passiva e corresponde à frase ativa (2):

(1) «Ele foi imaginado como um salvador.»

(2) «Uma pessoa imaginou-o como um salvador.»

Na frase (2), o pronome -o desempenha a função de complemento direto e «como um salvador» é o predicativo do complemento direto.

Quando a frase é convertida na forma passiva, o complemento direto -o passa a sujeito, assumindo a forma ele. Por seu turno, o constituinte «como um salvador», que predicava sobre o complemento direto, passa a ter como núcleo o sujeito, pelo que assume a função de predicativo do sujeito.

Disponha sempre!

«Inocentou-se aquele réu»
A passiva de -se

A questão de saber se a frase «Inocentou-se aquele réu» se encontra na passiva dá tema ao apontamento da professora Carla Marques (divulgado no programa Páginas de Português, da Antena 2, em 3/11/2024).

Pergunta:

Nas gramáticas a que estou a recorrer, são dados exemplos de conjunções coordenativas correlativas como «nem... nem», «tanto... como», «quer... quer», etc. No entanto, não encontro exemplos de conjunções subordinativas correlativas. A minha dúvida é se existem.

Lembrei-me dos seguintes casos: «tanto... quanto» e «tão... que». Serão exemplos de conjunções subordinativas correlativas, ou só se considera conjunção o segundo elemento e o primeiro não faz par?

Outra questão, uma das gramáticas, falando das orações coordenadas, divide os elementos que as introduzem em conjunções coordenativas e em advérbios conectivos, classificando expressões como «no entanto», «por isso», «por consequência», etc. como advérbios conectivos e não como locuções conjuncionais coordenativas. Porém, a mesma gramática, ao falar das orações subordinadas, fala tanto em conjunções subordinativas como em locuções conjuncionais subordinativas, dando o exemplo de «assim como», «desde que», «não obstante», etc.

Não percebo porque é que para as coordenativas não se fala em locuções, mas sim em advérbios conectivos; e porque é que, para as subordinadas, se fala em locuções e não em advérbios conectivos. Assumindo que isto está correto, quer isto dizer que não existem locuções conjuncionais coordenativas, sendo todas advérbios conectivos?

Muito obrigado e parabéns pelo vosso notável serviço.

Resposta:

Começaremos por esclarecer a razão pela qual palavras como «tão… que» , que surgem em oração subordinadas consecutivas, não são consideradas uma locução. Uma locução é um conceito gramatical que descreve um conjunto de duas ou mais palavas que desempenham uma função gramatical única.

Ora, tal não é o caso de estruturas como «tão…que». Nesta situação, estamos perante um operador consecutivo que, na oração principal assinala o grau e pede uma oração subordinada iniciada pela conjunção que, predicando, deste modo, sobre uma consequência associada ao grau. Por esta razão poderemos usar a frase (1), na qual se predica apenas sobre o grau, e a frase (2), na qual se predica sobre uma consequência associada ao grau:

(1) «Ele é tão forte.»

(2) «Ele é tão forte que transportou tudo sozinho.»

Este comportamento é diferente do que se identifica em locuções como «quer… quer» ou «não só… mas também».

Em segundo lugar, locuções como «no entanto», «por isso», «por consequência», entre outras, não são consideradas pelas abordagens gramaticais mais recentes como locuções coordenativas porque a análise do seu comportamento na frase evidenciou que estas têm um comportamento distinto das conjunções coordenativas. As conjunções, segundo Mateus1, caracterizam-se por ocupar a posição inicial do membro coordenado; não poderem deslocar-se para o interior do termo coordenado; por coordenarem constituintes frásicos e não frásicos. Já os advérbios conectivos, como, porém, todavia e contudo, não têm obrigatoriedade de colocação em início do membro coordenado (3), podendo mover-se no seu interior e podem coocorrer com as conjunções (4):

(3) «O João chegou; não telefonou, todavia, a ninguém»

(4) «O João chegou, mas, todavia, não telefonou a ninguém.»

Deste modo,...