Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «Cesário Verde foi dizer para a cidade de Lisboa...», o segmento «de Lisboa» desempenha a função sintática de complemento do nome ou modificador do nome restritivo?

Obrigada

Resposta:

O caso em apreço constitui uma situação particular associada aos nomes próprios.

O constituinte «cidade de Lisboa» é um grupo nominal constituído por um nome nuclear (cidade), que, neste caso, descreve a categoria da entidade referida e que permite incluí-la na toponímia (nomes de lugar, localidade). Este nome é seguido de outro, o nome próprio Lisboa, que contribui para individualizar a entidade referida e que, neste caso, é introduzida pela preposição de.

Como afirmam Raposo e Nascimento, «[p]ode-se, em princípio, propor que todos os nomes próprios, incluindo os canónicos, se caracterizam por ter um classificador descritivo da categoria ontológica a que pertencem, o qual é implícito no caso dos nomes próprios canónicos. […] Para os topónimos, o classificador implícito é o termo geral ‘lugar’, realizado frequentemente através de hipónimos como cidade, cordilheira, oceano, rio, vila […]”1.

Do ponto de vista sintático, estas construções não têm instrumentos de análise no ensino básico e secundário, pelo que se propõe que sejam vistas como estruturas inanalisáveis.

Disponha sempre!

 

 1. Para mais informações, cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1015-1018;1037-1041.

 

NEPara uma classificação que é válida no Brasil, mas não em Portugal, consultar as respostas sobre o conceito de «aposto especificativo», indicadas nos Textos Relacionados.

Pergunta:

Na frase «O mundo da arte está cheio de modelos femininos», qual a função sintática de "da arte"?

Muito obrigada.

Resposta:

No caso em apreço, o constituinte «da arte» desempenha a função sintática de modificador do nome restritivo.

Mundo é um nome autónomo, com identidade semântica independente, o que significa que não pede um argumento que complete o seu sentido. Neste caso, o constituinte «da arte» incide sobre o nome mundo e restringe o seu sentido, associando-lhe um valor de classificação, que, neste caso, descreve um tipo1, denotando um tipo particular de mundo (equivalente a «área»).

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações sobre os sintagmas preposicionais classificadores, cf. Brito e Raposo in Raposo et al.,  Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1067-1070.

Pergunta:

Eu gostaria de tocar mais uma vez num assunto que já foi tratado cá no Ciberdúvidas, porém as respostas ainda não me satisfizeram. No dia 8 de outubro de 2024, quanto à minha pergunta em torno da frase “Bons olhos o vejam” e quanto à sua colocação pronominal enclítica, vós me respondestes o seguinte:

«Quanto à colocação do clítico, a próclise (colocação antes do verbo) ocorre porque a frase é optativa/exclamativa. Quando a frase inclui uma palavra exclamativa ou a própria frase tem uma natureza exclamativa, esses fatores geram próclise.»

De tal resposta se conclui que não seria possível construções como essas: «Vejam-no bons olhos» e «Bons olhos vejam-no».

Entretanto, recentemente, ao tratar do uso do infinitivo pessoal no seu Dicionário de Questões Vernáculas, Napoleão Mendes de Almeida traz a seguinte frase: «Perdoe-te o céu o haveres-me enganado», isso que me fez questionar se há realmente possibilidade de usar a ênclise em orações subjuntivas independentes sem a conjunção que, quando o verbo é o vocábulo que inicia a oração, como a frase : «Perdoe-te o céu o haveres-me enganado.»

O que vós dizeis sobre isso?

Desde já, muito obrigado.

Resposta:

Relativamente à construção exclamativa (1), mantemos o que ficou dito nesta resposta. Trata-se de uma estrutura fixa, com pouca variabilidade, onde se opta pela próclise por se tratar de uma frase optativa.

(1) «Bons olhos o vejam!»

Noutro plano, se considerarmos frases como (2) ou (3), estamos perante outra realidade sintática:

(2) «Vejam-no bons olhos.»

(3) «Abracem-no as boas maneiras.»

Nestes casos, estamos perante construções optativas que não apresentam um constituinte em posição pré-verbal, como acontecia em (1). Nestas situações em que a frase inicia com a forma verbal, o pronome átono surge em posição enclítica1.

Com orações optativas iniciadas por que ou que apresentem um constituinte pré-verbal, o pronome átono surge em próclise:

(4) «Que me escrevas depressa!»

(5) «Deus te acompanhe!»

Disponha sempre!

 

1. Cf. Martins in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2272-2273.

Pergunta:

Gostaria de saber qual a forma correta de escrever a seguinte frase: «alguma coisa boa há de acontecer-me» ou «alguma coisa boa há de me acontecer»?

Obrigado

Resposta:

As duas possibilidades estão corretas.

De uma forma geral, as orações que incluem verbo no infinitivo simples admitem a colocação dos pronomes átonos tanto em posição enclítica (depois da forma verbal no infinitivo) como em posição proclítica (antes da forma verbal no infinitivo)1.

As orações infinitivas introduzidas pela preposição de seguem o comportamento descrito no parágrafo anterior, como se observa pelos exemplos (1) e (2):

(1) «Tens de dar-lhe este recado.»

(2) «Tens de lhe dar este recado.»

As diferenças no uso enclítico ou proclítico estão, muitas vezes, dependentes da apreciação individual dos falantes, que preferem uma das posições.

Assim, no caso apresentado, poderemos aceitar as duas possibilidades:

(3) «Alguma coisa boa há de acontecer-me.»

(4) «Alguma coisa boa há de me acontecer.»

Pode ainda ocorrer a subida de clítico, o que se verifica na frase (5), que também é uma construção possível:

(5) «Alguma coisa boa me há de acontecer.»

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, cf. Martins in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2278-2283.

Pergunta:

Na frase «Frequentemente, dedicamos uma aula à leitura de poesia», a forma verbal tem valor iterativo ou habitual? Porquê?

Obrigada.

Resposta:

A frase apresentada veicula um valor aspetual gramatical habitual.

Tanto o aspeto iterativo como o habitual estão relacionados com a expressão da repetição de situações. O aspeto habitual descreve uma situação que «representa um padrão de repetição da situação suficientemente relevante a ponto de poder ser considerado como uma propriedade característica da entidade representada pelo sujeito gramatical»1. Por seu turno, o aspeto iterativo descreve uma situação «que se obtém quando uma situação é repetida numa porção espácio-temporal delimitada, mas sendo o conjunto dessas repetições perspetivado como um evento único»1.

Ora, na situação apresentada não se estabelece qualquer tipo de limite temporal para a situação descrita, pelo que ela é perspetivada como marcada por um padrão de repetição ilimitado. Por esta razão, veicula um valor aspetual habitual que é reiterado pelo advérbio de modo frequentemente.

Disponha sempre!

 

1.  Cunha in Raposo et al., Gramática do PortuguêsFundação Calouste Gulbenkian, p. 586.