Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostava de saber qual a relação que podemos estabelecer entre "atos de fala" e "valores modais". Às vezes, parece que estamos a falar da mesma coisa... Por exemplo, a modalidade deôntica pode apresentar um valor de obrigação -- ideia que coincide com os atos ilocutórios diretivos (que muitas vezes se referem a ordens).

Resposta:

Os atos de fala e a modalidade constituem duas perspetivas de análise linguística particulares, que se integram em plano distintos da reflexão gramatical. Assim, a modalidade expressa «por meios linguísticos, atitudes e opiniões dos falantes ou das entidades referidas pelo sujeito sobre o conteúdo proposicional dos enunciados que produzem»1. Por seu turno, os atos de fala constituem ações linguísticas que têm lugar através de um dado enunciado que um locutor dirige a um dado ouvinte num determinado espaço e num determinado tempo. Este enunciado é sempre associado a uma intenção comunicativa com uma determinada força ilocutória (informar, exclamar, pedir…). Deste modo, a análise dos atos de fala situa-se no plano da pragmática enquanto o valor modal se associa a uma análise situada no plano semântico.

Em particular, a modalidade deôntica envolve duas entidades: aquela que dá uma ordem ou uma permissão e aquela sobre a qual recai a obrigação, como se observa em (1) e (2):

(1) «A Rita permitiu ao João que fosse à festa.»

(2) «Vai buscar uma folha.»

Nestas frases, a modalidade expressa-se através da seleção do verbo permitir ou do recurso ao modo imperativo, recursos linguísticos que exprimem a atitude do locutor ou sujeito do enunciado. Esta análise pode dispensar a consideração do contexto em que decorreu a interação linguística.

No plano de análise dos atos de fala, considera-se sempre o contexto comunicativo de uso do enunciado e procura avaliar-se a intenção do locutor, responsável pela produção do enunciado e, logo, pela intenção que a ele se associa. Neste contexto, a frase (1) pode ser produzida pelo locutor com a força ilocutória de informar, pelo que configura um ato ilocutório assertivo. Já a frase (2), poderá ser associada à força ilocutória de uma ordem, pelo que poderá configurar ...

Pergunta:

 Tenho muitas dúvidas no uso de embora como conjunção concessiva, para traduzir os três casos do espanhol.

O dicionário Porto Editora, que é o que eu uso habitualmente, traduz a conjunção concessiva espanhola aunque por embora, e também por mas ou porém. Estes são os exemplos que coloca o dicionário:

«aunque ˈauŋke conjunção 1. embora [+conjuntivo] aunque llovía a cántaros, fueron al cine embora chovesse a cântaros, foram ao cinema 2.mas, porém no traigo todo, aunque traigo algo não trago tudo, porém trago alguma coisa»

Mas para mim o problema é que em espanhol há três casos de orações concessivas, que não sei como traduzir ao português:

I. O primeiro é o de situações reais habituais, ou seja, ações que acontecem habitualmente assim (no presente), ou aconteciam assim (no passado). Por isso, no exemplo de Porto Editora, em espanhol haveria que traduzir:

- “Aunque llueva a cántaros, van al cine” (realidade que acontece habitualmente, muitas vezes).

- Ou também: “aunque lloviese a cántaros iban al cine” (algo que acontecia muitas vezes no passado)

- Ou também: “ayer, aunque llovió a cántaros, fueron al cine” (algo que aconteceu uma vez no passado)

Nestes casos, em espanhol também se pode expressar com a conjunção adversativa pero (acho que seria a mesma coisa em português com mas):

- “muchas veces llueve a cántaros, pero ellos van al cine” (realidade que acontece habitualmente)

- Ou também: “llovia a cántaros, pero iban al cine” (algo que acontecia muitas vezes no passado)

- Ou também: “ayer llovió a cántaros pero fueron al cine” (algo que aconteceu uma vez no passado).

II. O segundo é o de situações possíveis, ou seja, ações que podem acontecer no futuro ou...

Resposta:

Em português, as orações concessivas distinguem-se em dois tipos: as factuais e as não factuais. As primeiras são apresentadas como verdadeiras e as segundas como hipotéticas ou contrafactuais1.

Em particular, a locução conjuncional «ainda que» pode introduzir orações com os três valores assinalados atrás:

(1) «Ainda que o João tenha conversado comigo, não lhe perdoei.» (valor factual)

(2) «Ainda que não queiram falar comigo, vou dizer a verdade.» (valor hipotético)

(3) «Ainda que tivessem vindo à festa, não teriam sido bem recebidos.» (valor contrafactual)

A conjunção embora associa-se preferencialmente ao valor factual:

(4) «Embora o João não venha à reunião, a sua opinião é importante.»

Como afirma Lobo, as orações factuais podem ser «introduzidas por embora, se bem que, ainda que seguidos de conjuntivo, ou por apesar de e não obstante seguidos de infinitivo flexionado»2.

O valor hipotético e contrafactual pode também ser expresso pela locução «mesmo que»:

(5) «Mesmo que o João venha à reunião, não sei se o resultado será o desejado.»

Disponha sempre!

 

1. cf. Lobo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2015.

2. id., ibid., p. 2016.

Pergunta:

Lemos comumente que o adjunto adverbial modifica verbo, adjetivo e advérbio e que, na ordem direta, se posiciona no fim da frase. Assim sendo, é separado por vírgulas quando posicionado de outro modo.

Mas essa diretiva não se fragiliza quando o adjunto adverbial modifique, não o verbo, mas o adjetivo? Nesses casos, parece-me que a ordem direta e, portanto, também o uso de vírgulas na ordem indireta dependem de uma análise quanto ao posicionamento do adjunto adverbial em relação ao adjetivo.

Pergunto se, no caso abaixo, a ordem direta não seria esta, sendo assim justificável não usar vírgulas:

«A expressão incomum no contexto requer leitura atenta.» (planeja-se que «no contexto» modifique o adjetivo incomum)

Se o raciocínio acima estiver de acordo com a norma, não só seria correto não utilizar vírgulas na construção acima como o uso delas poderia vincular de maneira indesejável o adjunto adverbial a outro termo:

«No contexto, a expressão incomum requer leitura atenta.» (não me parece aqui que o adjunto adverbial modifique incomum, entendo que modifique o verbo).

Muito obrigado desde já.

Resposta:

Conforme sinaliza a intuição do consulente, o uso de vírgulas no constituinte «no contexto» pode associá-lo a uma função sintática distinta daquela que desempenha sem vírgula.

Em primeiro lugar, diga-se o adjunto adverbial (modificador do grupo verbal), quando é anteposto ao verbo, costuma levar vírgula:

(1) «No sábado, fomos ao cinema.»

Por esta razão, a frase apresentada pelo consulente, aqui transcrita em (2), inclui um adjunto adverbial, que leva vírgula por estar localizado em início de frase:

(2) «No contexto, a expressão incomum requer leitura atenta.»

Nesta frase, o constituinte «no contexto» incide sobre o grupo verbal «requer leitura atenta» modificando o seu sentido: afirma-se que a leitura atenta deve ser feita num determinado contexto.

Não obstante, este mesmo constituinte pode associar-se não ao verbo, mas ao adjetivo incomum, como também sinaliza o consulente:

(3) «A expressão incomum no contexto requer leitura atenta.» 

Neste caso, «no contexto» é um complemento do adjetivo e, nessa qualidade, terá de ser colocado à direita do adjetivo e não leva vírgula, como acontece com outros complementos de adjetivo apresentados, a título de exemplo, a seguir:

(4) «Feliz com a situação»

(5) «contente por ter terminado»

(6) «ansioso para começar»

Em (3), o adjetivo incomum rege a preposição em, que introduz o complemento do adjetivo, e, neste caso, o que se afirma é que o traço incomum se ativa em determinado contexto, sendo equivalente a (7):

(7) «A expressão que é incomum no contexto requer leitura atenta.»

...

Pergunta:

Diz-se «estar mortinho por» ou «estar mortinho para»?

Resposta:

Com o sentido de “estar desejoso/ansioso”, é preferível a construção com a preposição por.

O adjetivo mortinho (assim como o adjetivo morto) constrói-se sobretudo com as preposições de e por.

Introduzido pela preposição de, o sintagma preposicional que acompanha o adjetivo tem o significado de causa / razão1:

(1) «Estou mortinho de fome.»

Com a preposição por, a construção tem o sentido de “estar ansioso”, “estar vivamente interessado”2:

(2) «Estou mortinho por chegar.»

Não obstante, como verifica Celso Luft, hoje verifica-se uma tendência para usar a preposição para nos contextos em que se usava apenas a preposição por3, o que se poderá ficar a dever ao facto de a preposição para traduzir um valor de finalidade que não é distante do "estar desejoso" que se traduz com a preposição por:

(3) «Estou mortinho para falar com o João.»

Disponha sempre!

 

1. Cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp.1549-1550

2. Cf. Luft, Dicionário Prático de Regência Nominal. Ed. Ática, pp. 344-345.

3. Id., Ibid.

Pergunta:

Não querendo, de todo, desafiar Alberto Caeiro ou qualquer outro dos heterónimos de Pessoa, gostaria de (melhor) compreender a regra que permite escrever o seguinte: "O rebanho é os meus pensamentos"

Bem sei que se aplicam regras específicas quando se utilizam nomes colectivos. Porém, aplicando a mesma lógica, peço-vos que me indiquem se os próximos exemplos estão ou não correctos:

«O público é as minhas emoções.»

«A multidão é as minhas reivindicações.»

Grafia de acordo com a norma ortográfica de 1945

Resposta:

Nesta frase, o verbo ser encontra-se na 3.ª pessoa do singular porque concorda com o sujeito da frase, que é «o rebanho». Este constituinte é passível de ser substituído pelo pronome pessoal ele, o que clarifica a opção pela 3.ª pessoa do singular.

Acrescente-se ainda que o verso de Caeiro, retirado do poema "Sou um guardador de rebanhos", constitui uma frase copulativa identificadora, que se caracteriza por identificar o sujeito «como sendo portador de tal ou tal propriedade.» (Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1319).

Desta forma, visto que as restantes frases apesentadas pelo consulente têm a mesma natureza do verso do poema de Caeiro, estas são corretas.

Disponha sempre!