Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «Álvaro, morador na Rua das Acácias, foi assaltado ao sair de casa», o termo “morador” está funcionando como adjetivo ou substantivo?

Em sendo substantivo, seria concreto ou abstrato?

Pergunto ainda: morador é adjetivo ou substantivo derivado do verbo morar? A expressão «na Rua das Acácias» é complemento nominal ou adjunto adnominal?

Obrigado.

Resposta:

Na frase apresentada, morador integra um constituinte alargado («morador na Rua das Acácias»), que desempenha a função de aposto/modificador apositivo do nome próprio Álvaro. Neste âmbito, a questão colocada, à partida, passa por identificar a natureza do constituinte que desempenha esta função sintática: trata-se de um sintagma nominal ou de um sintagma adjetival? Esta classificação dependerá da classe de pertença de morador, que, à partida, tanto poderá assumir o comportamento de um adjetivo como de um nome.

Relativamente a este aspeto, parece-nos que, na frase em questão, morador poderá ser classificado tanto enquanto nome como enquanto adjetivo. Por um lado, é compatível com o determinante artigo definido, assumindo, neste caso o comportamento de um nome

(1) «Álvaro, o morador na Rua das Acácias, foi assaltado ao sair de casa.»

Sendo o sintagma nominal, de acordo com esta interpretação, equivalente à oração relativa presente em (2):

(1)   «Álvaro, o que mora na Rua das Acácias, foi assaltado ao sair de casa.»

Por outro lado, embora não possa ser modificador por uma expressão de grau (o que acontece apenas aos adjetivos graduáveis), morador pode surgir em posição de modificador restritivo de nome:

Pergunta:

Acabo de ler: «Não se pode ter muitos amigos e mesmo os poucos amigos que se têm não se podem ter como nos apetecia.»

Ao ler o «se têm», achei logo que deveria ser «se tem» (impessoal»). No entanto, ao ler o resto da frase («não se podem ter...»), hesitei na minha correção. Afinal, nestes casos, é melhor, pior ou indiferente escrever «se tem» em vez de «se têm»?

Resposta:

A questão colocada está relacionada com o fenómeno de concordância verbal em orações que incluam um sujeito pronominal indeterminado, nomeadamente as orações de se impessoal. Neste caso, o verbo pode flexionar na 3.ª pessoa do singular, tendo se como sujeito. Não obstante, com verbos transitivos que têm como argumento interno um sintagma nominal, este constituinte pode realizar-se como sujeito gramatical, convertendo a oração numa passiva pronominal (ou passiva sintética)1. Isto significa que, de acordo com o que ficou dito, as frases (1) e (2) são ambas aceitáveis2:

(1) «Aqui compra-se os melhores fatos.»

(2) «Aqui compram-se os melhores fatos.»

Acresce, ainda, que quando o sintagma nominal da frase se encontra posicionado antes do verbo, este concorda com aquele (exceto se houver uma pausa entre este constituinte e o verbo):

(3) «Os melhores fatos compram-se aos domingos.»

(4) «*Os melhores fatos compra-se aos domingos.» vs. «Os melhores fatos, compra-se aos domingos.»

A frase apresentada pelo consulente inicia com uma oração de se impessoal («Não se pode ter muitos amigos»). Estas orações incluem um verbo que flexiona na terceira pessoa, não concordando com nenhum sintagma nominal da oração, pois o pronome se funciona como sujeito.

A segunda oração, uma coordenada copulativa («e mesmo os poucos amigos que se têm não se podem ter como nos apetecia»), integra uma oração subordinada adjetiva relativa e uma oração subordinada adverbial comparativa. Comecemos por analisar a oração relativa: «que se têm». Neste caso, o verbo ter não está a concordar com...

Pergunta:

Gostaria de pedir mais informação relativamente ao excerto (que transcrevo) da seguinte resposta:

«A consulente apresenta também um conjunto de frases que incluem a estrutura «por mais que», que se pode considerar entre as introdutoras de orações concessivas. Neste caso particular, são apresentados dois tipos de concessivas: as factuais, como em (19) ou (29) , que apresentam o imperfeito ou o pretérito perfeito do conjuntivo na subordinada e o pretérito perfeito na subordinante: (19) "Por maiores que fossem os problemas, ele não desistiu." (20) "Por maiores que tenham sido os problemas, ele não desistiu". Já a frase que apresenta o mais-que-perfeito do conjuntivo é incorreta, porque o recurso ao mais-que-perfeito do conjuntivo na subordinada aponta para um valor contrafactual que exigiria o uso do mais-que-perfeito composto do indicativo ou o condicional na subordinante: (21) "*Por maiores que tivessem sido os problemas, ele não desistiu."»

Gostaria de saber a que se deve o valor contrafactual de «Por maiores que tivessem sido os problemas». Surge-me esta dúvida porque, segundo percebo, o mais-que-perfeito do conjuntivo pode ser usado em concessivas factuais.

Ex: Embora o tivesse visto, não o cumprimentou.

e a estrutura «por maiores que» também, tal como o demonstra a frase (20) da transcrição.

Sendo assim, é esta combinação concreta da estrutura «Por mais que»' com o mais-que-perfeito do conjuntivo que cria o valor contrafactual?

Poderiam indicar-me, por favor, outras estruturas que, juntamente com o mais-que-perfeito composto, criam este valor contrafactual?

Por outro lado, o impe...

Resposta:

Antes de mais, importa referir que a resposta citada na pergunta do consulente se inscreve num quadro geral do uso do conjuntivo em orações subordinadas, pelo que aí se apontam traços gerais do uso deste modo e dos respetivos tempos, procurando identificar valores gerais e distintivos entre tempos e modos. 

Relativamente à questão relacionada com a frase aqui apresentada em (1)

(1)   «Por maiores que tivessem sido os problemas, ele não desistiu.»

Cumpre esclarecer, antes de mais, que a frase está a ser considerada sem qualquer contexto que possa alterar o seu valor de base, o que é um fator determinante uma vez que os valores das orações concessivas podem ser condicionados «pelo tempo e modo do verbo da oração subordinada e da oração principal, pela classe aspetual do predicado da oração subordinada e por fatores pragmáticos» (Lobo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2016)

Na frase apresentada em (1), o verbo da oração subordinante encontra-se no pretérito perfeito do indicativo, o que aponta para uma situação apresentada como factual. No entanto, o verbo da oração subordinada surge no pretérito mais-que-perfeito do modo conjuntivo, apontado preferencialmente para uma situação que não é apresentada como verdadeira (que poderá ser falsa ou hipotétic...

Pergunta:

«Apesar de ter muito dinheiro, é muito avarento.»

«Ainda tendo muito dinheiro, é muito avarento.»

Estas duas frases têm significados semelhantes? A estrutura ainda+gerúndio é concessiva?

Muito obrigado.

Resposta:

O uso referido será possível em algumas situações, embora não pareça ser generalizado, parecendo mais aceitável, do ponto de vista dos falantes, a sua substituição pela construção «mesmo + gerúndio».

Na qualidade de advérbio, ainda pode combinar-se com verbos flexionados em diferentes tempos e modos. De uma forma geral, o advérbio ainda incide sobre o verbo denotando uma informação de valor temporal, relacionada com o facto de a situação ter, por exemplo, um valor durativo, como em (1), ou denotando uma situação que, no limite final do intervalo temporal, acabou por ter lugar, como em (2):

(1) «A Joana ainda foi ao cinema.»

(2) «Ele ainda viu o jogo.»

O advérbio ainda pode incidir igualmente sobre verbos no gerúndio, integrando orações adverbiais gerundivas. Neste caso, o valor da oração é construindo pela própria oração gerundiva e não pelo valor do advérbio isoladamente. Deste modo uma oração gerundiva pode veicular um valor condicional-concessivo, como em (3):

(3) «Mesmo prestando atenção às aulas, não percebeu a matéria.»

Com este uso, é possível assinalar, a partir do Corpus do Português, de Mike Davies, construções com um valor idêntico que integram o advérbio ainda:

(4) «Mas nunca deixamos de atender corretamente alguns representantes da Xunta de Galicia, ainda tendo políticas diametralmente opostas a respeito da língua (e não só).» (in A Viagem dos ArgonautasGalegos de Londres. Notas. – por Carlos Durão)

(5) «Duas blasfêmi...

Pergunta:

«A sua presença na inauguração da loja irá valorizar a mesma iniciativa.»

«A sua presença na inauguração da loja irá valorizar a própria iniciativa.»

É possível usar a palavra mesma, como sinónima de própria no contexto apresentado?

Muito obrigado

Resposta:

Na frase apresentada, a substituição de mesmo por próprio poderá ser viável num discurso mais informal.

Tanto mesmo como próprio podem ser usados com valor anafórico retomando uma palavra que foi usada anteriormente no discurso. Mesmo tem um valor específico que lhe permite indicar “a coincidência, a identidade, a igualdade ou a semelhança”1. Já próprio assinala aquilo “que se refere expressamente ao ser, ao assunto ou à coisa”1. Estes sentidos ficam claros nas diferenças que se estabelecem entre as frases (1) e (2):

(1) «Os mesmos alunos trataram do assunto.»

(2) «Os próprios alunos trataram do assunto.»

No entanto, em usos quotidianos e menos formais, estas frases poderão ser tidas como próximas, veiculando sentidos semelhantes.  Situação similar poderá ocorrer na frase apresentada na questão, pelo que existe alguma viabilidade na substituição de mesmo por próprio. Num contexto mais formal, todavia, é aconselhável usar as palavras com o sentido preciso que o dicionário lhes atribui.

Próprio e mesmo poderão ainda ser usados como sinónimos num contexto em que ambas as palavras significam “que se representam verdadeiramente”1:

(3) «Ele mesmo falou connosco.»

(4) «Ele próprio falou connosco.»

ou com o valor de “reflexo de uma pessoa do discurso"1:

(5) «Ele representa-se a si mesmo.»

(6) «Ele representa-se a si próprio.»

Disponha sempre!