Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Entendo a diferença entre seu e dele, mas fico muito confuso na utilização de um ou de outro, no sentido em que acabo por usá-los no mesmo texto, por vezes na mesma frase. É isto correto?

Poderei referir-me no mesmo texto a uma mesma pessoa por vezes com dele, por vezes com seu, conforme me soar melhor?

Por exemplo, posso dizer em determinado passo «Um carro excelente, o dele» e mais à frente «anotou no seu diário», referindo-se estes passos à mesma pessoa? É que neste caso soa-me mesmo melhor o «dele» no primeiro caso, e o «seu» no segundo. É isto aceitável?

Obrigado.

Resposta:

As construções apresentadas são aceitáveis e a sua ocorrência num mesmo texto também é possível.   

Seu é um pronome ou demonstrativo possessivo, enquanto dele é um sintagma preposicional resultante da contração da preposição de com o pronome pessoal ele. Embora pertencentes a classes diferentes seu e dele expressam um valor de posse equivalente, pelo que podem ser usados nos mesmos contextos, ainda que dele possa ser sentido como uma forma mais oralizante.

Repare-se, no entanto, que o uso do sintagma dele será preferível nas circunstância em que a presença de seu gera ambiguidade entre a 3.ª e a 2.ª pessoa do singular, como acontece em (1):

(1) «Ele passou-me o seu livro.» (Refere-se o livro dele ou o livro da pessoa a quem trato por você ou por senhor?)

Assim sendo, terá o consulente de verificar se no seu texto se verifica esta ambiguidade gerada pelo uso do possessivo seu, podendo recorrer a dele para a desfazer.

Disponha sempre!

Pergunta:

Recentemente li a seguinte expressão: «Trazemos sempre muita coisa de Itália.»

A minha dúvida refere-se a julgar que, em vez de «usar muita coisa», deveria ler-se «usar muitas coisas».

Resposta:

Não encontrámos uma regra que esclareça de forma normativa se se deve preferir «muitas coisas» à expressão «muita coisa».

Note-se que, mesmo entre os gramáticos, se verifica uma oscilação nos usos. Por exemplo, Napoleão Mendes de Almeida, na Gramática Metódica da Língua Portuguesa, usa, em diversas ocasiões, a expressão no singular. Evanildo Bechara, por seu turno, na Moderna Gramática Portuguesa, usa-a no plural.

Parece que estamos, portanto, perante um caso em que as expressões são usadas como equivalentes.

Não obstante, para os usos relacionados com muito, poderemos seguir as indicações de Edite Prada (nesta resposta), onde se esclarece que muito ficará no singular quando acompanha nomes coletivos («muita gente») e irá para o plural com os restantes nomes comuns («muitas coisas»).

Disponha sempre!

Pergunta:

Sobre a regência do verbo desgarrar, encontrei que é transitivo («desviar do rumo»), intransitivo e pronominal («desviar-se do rumo»). No entanto, gostaria de entender se a expressão «desgarrar para longe» encontra respaldo na linguagem formal.

Obrigada.

Resposta:

O verbo desgarrar pode ter vários usos:

i) como verbo intransitivo:

    (1) «O navio desgarrou.» (Dicionário Houaiss)

ii) como verbo transitivo direto:

    (2) «O vendaval desgarrou uma das embarcações.» (Dicionário Houaiss)

iii) como verbo transitivo indireto:

    (3) «O satélite desgarrou da sua órbita.» (Dicionário Houaiss)

iv) como verbo pronominal:

    (4) «Desgarrar-se por caminhos tortuosos.» (Dicionário Houaiss)

Nestes usos, o verbo significa «apartar-se (da sua rota), desviar(-se), afastar(-se)».

No caso em apreço, não temos um contexto que permite aferir o sentido que se associa ao verbo desgarrar. No entanto, à partida, qualquer dos significados apresentados atrás poderá esclarecer a intenção veicul...

Pergunta:

Assim é a primeira estrofe do poema "O Mergulhador", do poeta brasileiro Vinicius de Moraes:

«Como, dentro do mar, libérrimos, os polvos
No líquido luar tateiam a coisa a vir
Assim, dentro do ar, meus lentos dedos loucos
Passeiam no teu corpo a te buscar-te a ti.»

Para além do efeito poético que a prodigalidade dos pronomes oblíquos proporciona, que relações gramaticais poderiam ser identificadas nesse emaranhado deles?

Já me deparei com pronomes oblíquos tônicos sucedidos por átonos, mas sempre atribuí a um pleonasmo são. Em tais casos, porém, não me oriento bem.

Resposta:

No caso em apreço, todos os pronomes pessoais de segunda pessoa desempenham a mesma função sintática: a função de complemento direto.

As formas diferentes que os pronomes apresentam resultam de uma exploração das suas possibilidades de colocação na frase, o que contribui para o aparecimento do pleonasmo e de uma certa musicalidade associada à aliteração1.

Assim, a forme te surge em posição proclítica (antes do verbo). Esta é uma colocação típica da linguagem coloquial na variante brasileira do português. A mesma forma te surge em posição enclítica (depois do verbo), uma colocação típica da variante europeia do português. Por fim, a forma preposicionada «a ti» constitui um caso de redobro do pronome clítico. Trata-se de uma construção de reforço introduzida pela preposição a que desempenha a mesma função do pronome que repete. Por essa razão, o sintagma «a ti» desempenha também a função de complemento indireto.

Disponha sempre!

 

1. Note-se, porém, que, numa perspetiva normativa, o uso do pronome aqui apresentado é redundante, pelo que não se recomenda. 

Páscoa
Origem e significados (novos e velhos)

A professora Carla Marques apresenta uma crónica dedicada ao percurso da palavra Páscoa das suas origens até chegar ao português.