Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual o tipo de modalidade e valor modal das seguintes afirmações:

«Sou a portadora desta carta para Vossa Excelência. Que não venha cá, porque isso seria inútil, e muito perigoso.»

 

Resposta:

As afirmações apresentadas são retiradas da obra Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco.

Usaremos aqui as frases originais da obra.

Assim, na primeira frase, dirigida por Mariana a Teresa, na sequência da pergunta desta última sobre a sua identidade, estamos perante a modalidade epistémica com valor de certeza, que permite a Mariana apresentar-se:

(1) «— Sou uma portadora desta carta para vossa excelência.»

A segunda frase, dita por Teresa a Mariana, apresenta como modalidade dominante a deôntica, com valor de ordem, dando forma à intenção de Teresa de ordenar a Mariana que diga a Simão que está proibido de se aproximar do convento onde ela se encontra:

(2) «[Diz-lhe] Que não venha cá, porque isso seria inútil, e muito perigoso.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Venho pedir a vossa ajuda acerca da identificação de um ato ilocutório.

A frase "Pobres, as palavras, insignificantes, insuficientes" constitui um ato ilocutório assertivo ou expressivo? Porquê?

O contexto é um texto de Francisco Assis (jornal Público, 19/11/2023):

«As palavras são incapazes de exprimir algumas alegrias. Pobres, as palavras, insignificantes, insuficientes. Mas a música chega lá.»

Muito obrigada pela vossa ajuda,

Resposta:

O ato ilocutório expressivo visa expressar um dado estado psicológico do locutor, responsável pela frase, relativamente a um estado de coisas presente no enunciado (ou subentendido). Assim, em (1) o locutor manifesta o seu estado psicológico de arrependimento relativamente a uma ação anterior sobre o interlocutor:

(1) «Desculpa-me por te ter magoado.»

Em (2), o locutor expressa o seu estado de agradecimento pelo facto de ele próprio ter concluído o curso:

(2) «Estou feliz por ter concluído o curso.»

Assim, os atos ilocutórios expressivos implicam que o locutor faça um juízo de valor que assenta no efeito de uma dada situação no interlocutor, como em (1), ou nele próprio, como em (2).

Searle apresenta uma lista de verbos performativos que exemplificam os atos ilocutórios expressivos: agradecer, congratular(-se), desculpar-se, exprimir condolências, deplorar, dar as boas-vindas e saudar.

Ora, no caso da frase apresentada, o locutor não expressa o seu estado emocional relativamente a um dado estado de coisas, pelo que, à partida, não estaremos perante um ato ilocutório expressivo. A intenção será antes a de descrever um facto, relacionando o locutor com a verdade do enunciado, o que configura um ato ilocutório assertivo.

Não obstante, a presença dos adjetivos pode alterar a curva entonacional da frase, que passa de assertiva a exclamativa. Este facto leva a que alguns autores defendam que estes serão enunciados híbridos, que conjugam dois atos ilocutórios: o assertivo e o expre...

Pergunta:

Entre colegas, surgiu uma discussão sobre um recurso expressivo na estância 19 d'Os Lusíadas: anástrofe ou hipérbato?

Já no largo Oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cobertos [...]

Nesta estância, podemos afirmar que estamos perante anástrofes em «Das naus as velas côncavas inchando» e «Da branca escuma os mares se mostravam/ Cobertos»?

Considero que o hipérbato consiste numa alteração "violenta" na ordem natural da frase, como "os casos que o Adamastor contou futuros".

Desde já, agradeço o vosso esclarecimento.

Resposta:

Tanto a anástrofe como o hipérbato são figuras relacionadas com a ordem das palavras na frase: a sua ação expressiva consegue-se por meio da alteração do sítio natural das palavras. A anástrofe tem um enfoque mais curto, na medida em que corresponde à inversão da ordem normal de palavras que se sucedem, ou seja, de palavras vizinhas. O hipérbato, por seu turno, corresponde a uma alteração da ordem das palavras que separa palavras de maior proximidade sintática, intercalando-as com elementos que não pertencem imediatamente a esse lugar. Os autores definem o hipérbato como uma alteração de natureza mais violenta, o que por vezes “obscurece o pensamento”1, o que não acontece com a anástrofe que traz uma alteração da ordem mais suave2.

Não obstante, refira-se que vários autores defendem que, em muitos exemplos, não é fácil distinguir anástrofe de hipérbato.

Nos versos de Camões, existe uma alteração da ordem natural das palavras:

(1) «Das naus as velas côncavas inchando» (= «inchando as velas côncavas das naus»)

(2) «Da branca escuma os mares se mostravam/ Cobertos» («os mares mostravam-se cobertos da branca escuma»)

Se compararmos os versos originais com os enunciados onde se faz a reposição da ordem natural, poderemos afirmar que esta alteração não foi violenta: em (1), ao verbo antepõe-se o complemento direto e a este constituinte antepõe-se o complemento do nome; em (2) antepõe-se o complemento do adjetivo.

Por esta razão, a meu ver, estamos perante um caso de anástrofe.

Disponha sempre!

 

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Pergunta:

Relativamente ao "hábito" de se responder a partir das perguntas dos enunciados, noto uma tendência que se traduz na seguinte frase:

«A importância dos sonhos É QUE/É PORQUE a personagem pressente algo ruim.»

Perguntava-vos, como tal, se é aceitável uma construção desse género.

Obrigado.

Resposta:

Ambas as possibilidades estão corretas. O seu uso poderá apenas ser discutido num plano estilístico de maior ou menor elegância linguística.

As estruturas «é porque» e «é que» constituem estratégias de marcação de tópico, ou seja, trata-se de uma estrutura de realce, que, neste caso, é usada porque os alunos retomam o constituinte da pergunta sobre o qual incide a interrogação:

(1) «Qual é a importância dos sonhos?»

       «A importância dos sonhos é que…»

(2) «Porque são os sonhos importantes?»

         Os sonhos são importantes porque…»

Estas ocorrências em contexto escolar motivam uma abordagem que propicie a diversificação de estruturas frásicas para construir uma resposta a uma questão de interpretação.

Disponha sempre!