O músico e escritor brasileiro Chico Buarque – Chico Buarque de Hollanda, de seu nome completo – recebeu no dia 24 de abril de 2023 o Prémio Camões, quatro anos depois de ter sido distinguido, numa cerimónia no Palácio de Queluz, em Lisboa. Chico Buarque tinha sido distinguido, com o maior galardão literário dedicado à literatura em língua portuguesa, o Prémio camões-2019, mas a cerimónia de entrega nunca se realizou depois das suas críticas às políticas culturais do anterior Presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que, em retaliação, se recusou a assinar o diploma, cuja entrega formal estava prevista para abril de 2020.
Quatro anos decorridos desses «anos de estupidez e obscurantismo», nas palavras de Chico Buarque, a cerimónia ocorreu na véspera dos 49 anos do 25 de Abril em Portugal — data histórica assinalada simbolicamente com a sua celebrada composição "Tanto Mar", ainda o seu país vivia sob ditadura militar. Segunda coincidência foi a visita oficial do Presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, de quem o autor de Estorvo (2012), O Irmão Alemão (2015), A Banda (2017), Tantas Palavras (2018), Budapeste (2019), Benjamim (2021) e Leite Derramado (2022), entre outros livros, é apoiante, além de votante no Partido dos Trabalhadores (PT).
Daí que um e outro tema não escapassem no discurso proferido na cerimónia de entrega do Prémio Camões-2019, além da evocação do pai, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda. E, sem nunca nomear Jair Bolsonaro, Chico Buarque não deixou de alfinetá-lo: «[O] ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prémio Camões, deixando o seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula» — acentuou, dedicando a «honraria pessoal» recebida aos «artistas humilhados» pelo anterior governo brasileiro».
A transcrição, na integra, do discurso oficial de Chico Buarque:
«O gajo que um dia pediu que lhe mandassem
um cravo e um cheirinho de alecrim»
«Ao receber este prêmio penso no meu pai, o historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa. Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária. Mais tarde, quando me bandeei para a música popular, não se aborreceu, longe disso, pois gostava de samba, tocava um pouco de piano e era amigo próximo de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua. Posso imaginar meu pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá no meu posto, a receber o Prêmio Camões com muito mais propriedade.
Meu pai também contribuiu para a minha formação política, ele que durante a ditadura do Estado Novo militou na Esquerda Democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro. No fim dos anos sessenta, retirou-se da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em solidariedade a colegas cassados pela ditadura militar. Mais para o fim da vida, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática no nosso país, nem muito menos pressupor que um dia cairíamos num fosso sob muitos aspectos mais profundo.
O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco. Recuando no tempo em busca das minhas origens, recentemente vim a saber que tive por duodecavós * paternos o casal Shemtov ben Abraham, batizado como Diogo Pires e Orovida Fidalgo, oriundos da comunidade barcelense. A exemplo de tantos cristãos-novos portugueses, sua prole exilou-se no Nordeste brasileiro do século XVI. Assim, enquanto descendente de judeus sefarditas perseguidos pela Inquisição, pode ser que algum dia eu também alcance o direito à cidadania portuguesa a modo de reparação histórica. Já morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência, mas é sempre bom saber que tenho uma porta entreaberta em Portugal, onde mais ou menos me sinto em casa e me esmero nas colocações pronominais.
Conheci Lisboa, Coimbra e Porto em 1966, ao lado de João Cabral de Melo Neto, quando aqui foi encenado seu poema "Morte e Vida Severina" com músicas minhas, ele, um poeta consagrado e eu, um atrevido estudante de arquitetura. O grande João Cabral, primeiro brasileiro a receber o Prêmio Camões, sabidamente não gostava de música, e não sei se chegou a folhear algum livro meu.
Escrevi um primeiro romance, Estorvo, em 1990, e publicá-lo foi para mim como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação. Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, hoje meus colegas de Prêmio Camões. De vários autores aqui premiados fui amigo, e de outras e outros – do Brasil, de Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde — sou leitor e admirador. Mas por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim.
Valeu a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos. Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se me haviam esquecido, ou, quem sabe, se prêmios também são perecíveis, têm prazo de validade. Quatro anos, com uma pandemia no meio, davam às vezes a impressão de que um tempo bem mais longo havia transcorrido. No que se refere ao meu país, quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda parte. Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula. Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo.
Muito obrigado.»
*Vide o esclacimento suplementar inserto na Abertura Os duodecavós de Chico Buarque, o nome pelé, a conjunção porque, o digital no ensino e uma Festa da Música Portuguesa ... em inglês, do dia 28/04/2023, sobre a forma duodecavós, com a variante dodecavós, e o significado de «décimos segundos avós» (ou «duodécimos avós»): «É vocábulo pertencente à série lexical dos graus de parentesco e resultante da associação de formas numerais de origem grega: pentavós, «quintos avós»; hexavôs, «sextos avós»; heptavós..., «sétimos avós»... – cf. "Graus de Parentesco (Direito Civil)", portal JusBrasil). Esta é, no entanto, uma classificação longe de ter aceitação universal, porque também se usa e até se prefere, pelo menos, em Portugal, o sistema constituído pela associação de numerais ordinais aos nomes avô, avó, avós e avôs: «quintos avós», «sextos avós», «sétimos avós»... (cf. "Avô, bisavô, trisavô, tataravô e depois?", Geneall).»
Cf. Marcelo para Chico Buarque: «Meu caro amigo, me perdoe, por favor, essa demora» + Lula da Silva honrado por entregar Prémio Camões a Chico Buarque e poder corrigiu hoje um dos «maiores absurdos cometidos contra a cultura brasileira» + Chico Buarque: «A ameaça fascista persiste no Brasil e um pouco por toda a parte»
Informação difundida por diversos meios noticiosos, portugueses e brasileiros – como, por exemplo, na CNN Brasil, Diário de Notícias, Estado de Minas, Expresso, Observador.