António Mega Ferreira *conta logo na introdução como nasceu este seu Roteiro Afetivo das Palavras Perdidas (ed. Tinta-da-China): «Ao longo dos anos, fui registando numa lista laboriosa de palavras que fui perdendo, palavras que tiveram um tempo no meu discurso (na minha vida?), ou que, pelo menos, nela traçaram um rasto fulgurante de cintilações afetivas rapidamente extintas no céu do meu olvido.» Resultado: desta «coletânea de murmúrios e reminiscências [...], menos de um terço das palavras listadas acabou por vir à escrita». Ou seja: 80 de uma lista inicial de 250.
Assumidamente «sem pretensões lexicográficas», sobressai, no entanto, uma cuidada recolha e pesquisa etimológica e semântica em obras, dicionários e prontuários de referência, devidamente assinalados logo pelo autor no princípio do livro. O resto, que é o principal: o talento de escrita e a vasta cultura clássica deste reconhecido amante das palavras.
Por isso, mais do que um dicionário de termos envelhecidos pelo tempo ou caídos no esquecimento, Roteiro Afetivo das Palavras Perdidas é uma evocação vocabular do quotidiano da geração lisboeta da segunda metade do século passado – a do próprio António Mega Ferreira –, numa viagem aos ambientes das ruas, das famílias, dos cafés, dos artistas e do contexto cultural desses tempos. Com a particularidade de, por cada palavra evocada pelo «espelho retrovisor da memória» do autor, fluir uma correspondente história vivida por ele mesmo.
Por exemplo, sobre a esquecida palavra fitas, que era o nome que se dava a filmes – um termo popularizado pelo cineasta António Lopes Ribeiro, «autor da primeira crónica sobre cinema publicada pela imprensa portuguesa (Sempre Fixe, julho de 1927), sob o pseudónimo Retardador e com o título ´Fitas Faladas´».
Ou quanto à palavra merenda, substituída pelo atual lanche: «Outrora, chamava-se merenda ao foro pago pelo caseiro ao seu senhorio e que consistia em vinho, fogaças (pão cozido nas cinzas) e uma peça de carne (Brunswick, 1910), que dá esta aceção como de "antiga linguagem já caída em desuso". Foi depois que passou a "leve refeição entre o jantar e a ceia", o lanche, uma tradução mal enjorcada do lunch inglês que aliás quer dizer tão-só almoço e nem por sombras se confunde com merenda.»
É o que se passava na sua juventude, como recorda António Mega Ferreira: «Confecionava-se uma merenda, quando se tratava de organizar os piqueniques de final de verão que nos levavam às altura de Santa Eufémia, na Serra de Sintra. [...] A meio da tarde, o que a inesquecível tia Lídia providenciava a mim e aos meus primos, era um lanche lauto e variado, com café com leite, torradas bem amanteigadas, bolachas barradas com doce de ameixa, cubinhos de marmeladas, fatias de pão de ló e uma travessa de leite-creme coberto com açúcar acabado de queimar. Para merenda, não estava mal.»
Telefonia, o nome que era dado ao aparelho recetor da rádio, é outra das palavras destacadas no livro, conduzindo-nos a outra história de infância do autor: «Lembro-me de o meu pai, republicano ferrenho, de ouvido encostado à telefonia, apostrofar os ingleses por, antes de um desafio de seleções contra Portugal jogado, presumo eu, em Inglaterra, terem tocado em vez de A Portuguesa, o Hino da Carta!»
Outra evocação é a palavra trampolineiro. «Atestada por todos os dicionários, desde Aulete 1881, [pertencente] a uma vasta família (trampolinice, trampolina, trampolinada)», é pretexto de outra reminiscência afetiva: «Um primo meu a quem chamavam afetuosamente trampolineiro era amigo de piadas, partidas e facécias; era o mais popular da família, o querido de tios e primas, o preferido das raparigas e o companheiro indispensável dos rapazes. Muito gostava eu dele! Deve ser por isso que a palavra trampolineiro conserva para mim uma ressonância afetiva tão forte.»
Já a palavra diva conduz-nos a outros afetos pessoais: a ópera. «Agitavam-se leques e aigrettes, malas e bengalas, por causa dos méritos da Tebaldi e da Callas, da Sutherland e da Simionato, como antes se tinham agitado por Conchita Supervia ou Nellie Melba. Ateavam-se pugnas críticas que de críticas tinham pouco e tudo deviam à paixão que as divas inflamavam.»
A sua ligação e fascínio por Itália transportam-no para a palavra espampanante, «um modismo nos anos 50 [que] ouvia-se sobretudo para designar uma mulher capitosa, planturosa, "de fazer parar o trânsito"». Origem: «A mim, quando era criança, o termo só me lembrava uma conhecida atriz italiana, então muito apreciada que tinha por nome Silvana Papanini: fora Miss Itália em 1946 e em pouco mais de uma década protagonizou mais de duas dezena de filmes dirigidos por Luigi Zampa, Pietro Germi, Abel Gance, Mario Monicelli e Luigi Comencini.»
«Exercício de introspeção de memórias», como o define António Mega Ferreira, este seu Roteiro Afetivo das Palavras Perdidas é, acima de tudo, um hino à língua portuguesa. Façam o obséquio de o desfrutar!
Cf. O último livro de António Mega Ferreira, o colecionador de palavras + «Não há um empobrecimento da língua, porque a língua existe e as palavras existem na língua. Mas há um empobrecimento no uso da Língua Portuguesa» + António Mega Ferreira vence Grande Prémio de Literatura de Viagens da APE + Mega Ferreira: «Até morrer, todos os anos hei-de ir a Itália»
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