Sob a chancela da Editora Húmus foi publicada em 2017 a obra Da Portugalidade à Lusofonia de Vitor Sousa. O texto é uma versão revista da sua tese de doutoramento em Ciências da Comunicação (Comunicação Intercultural) apresentada na Universidade do Minho, em julho de 2015, e que foi orientada pelo Professor Doutor Moisés de Lemos.
Logo na introdução o autor formula uma série de questões a que pretende responder ou sobre as quais, pelo menos, refletir na sua obra: «De que se fala, quando se fala de lusofonia?»; «Será que se está perante uma extensão de uma alegada "portugalidade"?»; «Ou trata-se, afinal, de um espaço cultural, inscrito num património imaterial, ligado por uma língua comum?»; «Em contexto pós-colonial, que debate sobre o "outro" é possível fazer-se?»; «Se existe um "outro" pós-colonial, de quem se trata?»; «Que mudanças na dinâmica relacional eu-outro/outro-eu foram operadas após a descolonização?»
O autor elabora de seguida uma resenha crítica e histórica pelos principais escritos que abordaram o conceito de portugalidade e de lusofonia. Foi o Ciberdúvidas que lhe deu uma primeira “pista” de investigação ao descobrir que o termo portugalidade só começou a ser utilizado nas décadas de 50 e 60 do século XX, em plena vigência do Estado Novo. Foi com Alfredo Pimenta e no opúsculo, Em Defesa da Portugalidade, de 1947, que Vitor de Sousa chegou à «conclusão de que esta foi a primeira vez em que algum autor se debruçou de forma específica sobre a temática da "portugalidade"», discorrendo sobre o seu significado e tipificando o conceito. Ideologicamente alinhado com Salazar e defensor da monarquia e da tradição, Pimenta evidencia um discurso antiparlamentar, antipartidário e anticomunista, autointitulando-se como doutrinador de "portugalidade". António Sardinha, António Quadros, José Fernandes Fafe, Agostinho da Silva e Teotónio Onésimo de Almeida foram outros autores da “portugalidade” estudados nesta obra.
Desta extensa obra sintetizemos três pontos:
1. O conceito lusofonia nunca poderá integrar quaisquer resquícios de portugalidade. É a sua tese essencial. Escreve o autor: «A meu ver, e pelo que tentei demonstrar ao longo da presente investigação, pode mesmo afirmar-se que perspetivar a lusofonia com a "portugalidade" configura um contrassenso. Eduardo Lourenço assinala mesmo que «aquilo que permitiria atribuir a verdadeira realidade e sentido à tão evocada lusofonia – não pode, nem sequer metaforicamente, ser pensado e imaginado como espaço de portugalidade».
2. O termo portugalidade remete sempre para o campo da mitologia histórica. Escreve o autor: «Em cada momento da história de Portugal – que não significa, hoje, o mesmo que história da "portugalidade" –, o mito está ao serviço dos regimes vigentes. No caso da "portugalidade", o Estado Novo, numa dimensão meramente política, tentou que ela fosse mítica, enfatizando uma alegada “alma portuguesa" (ideia que já vinha de trás, mas que foi sublinhada até à exaustão através da propaganda do regime) e uma natureza própria do povo português. Tratava-se, deste modo, de cunhar a palavra, tentando que a aparência, a forma da "portugalidade", fosse sublinhada pelo conceito, assente assim no domínio da política, para que se promovesse a sua generalização, com um recorte sempre encomiástico.» Neste contexto, o autor defende, invocando, Marc Bloch, a necessidade de contextualizarem-se os acontecimentos históricos e separá-los da mitologia.
3. O autor propõe uma definição para o termo portugalidade expurgada de toda a carga mitológica que lhe foi configurada pelo Estado Novo. Escreve: «Assim, a minha proposta de definição de "portugalidade", e para que a palavra possa ser utilizada sem aspas ou entre comas, como quase sempre até aqui, é que, além de dever ser contextualizada, figure simplesmente nos dicionários como "o mesmo que patriotismo", sendo que o sentido de “patriotismo” não se confina, aqui, à ideia de amor à pátria, mas adapta parte do recorte que lhe é dado por Igor Primoratz, no artigo sobre patriotismo que assina na Enciclopédia de Filosofia online da Universidade de Stanford (2009). Dessa forma, a "portugalidade" significaria um “sentimento especial por Portugal”, uma "identificação pessoal com Portugal" e uma "preocupação com o bem-estar de Portugal"».
Tal como na criação heteronímica de Fernando Pessoa, nega-se o eu como unidade constituída e perspetiva essa unidade no desafio do outrar-se (expressão utilizada pelo autor), a qual confere o desafio do poeta em querer encontrar nos heterónimos essa unidade pretendida. Este outrar-se pessoano é paradigmático das sociedades atuais e nela encaixa o conceito de lusofonia proposto pelo autor, que escreve: «O processo da globalização veio acelerar a desconstrução de uma única verdade, permitindo perspetivar realidades diferentes e, por conseguinte, a existência de várias verdades, numa dinâmica que se alastrou a todos os Estados, provocando situações ambivalentes […], a globalização também reavivou o conceito de identidade nacional e as idiossincrasias locais e abriu portas a uma lógica cosmopolita que, embora muitas vezes não deixe de ser uma construção difícil, permite equacionar pontes de entendimento e de trocas relacionais entre os povos, dando uma outra dimensão a todo o fenómeno (…) De facto, é de uma questão do foro cultural que se trata e, tal como a identidade, não decorre de qualquer processo acabado, reificado, uma vez que está em constante mutação, fazendo emergir uma multiplicidade de ‘verdades’. Nesse quadro, a/as lusofonia/lusofonias não se pode(m) compaginar com criações míticas, pois todas elas remetem, neste caso concreto, para uma alegada "portugalidade" – sublinhada durante o Estado Novo – que lhe(s) esteve na base, não dando o passo em frente que é necessário dar quando se olha para este assunto na contemporaneidade, em que a interculturalidade deve ser apanágio das relações sociais. E, como já se viu, a "portugalidade" é o oposto dessa dinâmica, constituindo-se como uma interculturalidade invertida.»
Em suma, a tese última do autor é a de que, para se afirmar, a lusofonia tem de ser um espaço de liberdade, de interculturalidade e assumida livremente pelos povos que habitam a geografia política da língua portuguesa, tem de ser culturalmente múltipla, até porque por se falar uma mesma língua não significa ter culturas afins. Estamos perante uma obra de grande densidade e dimensão que pretende de certa forma desconstruir determinadas epistemologias genealogias eurocêntricas (Inocência Mata), em que a análise histórico-cultural, particularmente de ex-impérios, se reorganiza com alicerces diferentes dos tradicionais, de antagonismos lineares e duais, que intentam perpetuar a supremacia de uma estrutura cultural e histórica no quadro pós-colonial. O objetivo desta obra é essencialmente revelar os labirintos subjacente à lusofonia, em que a «interculturalidade deve ser apanágio das relações sociais.»
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