«(...) A delicadeza de Lisboa deu à Triste Feia algo que suas belas e alegres contemporâneas não tiveram: uma rua pela eternidade. (...)»
Numa entrevista em Lisboa (...), perguntaram-me o que eu mais gostava em Portugal. «A delicadeza da língua», respondi. E expliquei: «É algo que um brasileiro percebe aqui a todo momento. Um jeito poético de nomear as coisas – uma delicadeza que veio do passado. Está nos nomes dos objetos, dos materiais, dos alimentos, das cidades e, principalmente, das ruas».
Abriu-se um mapa de Lisboa e comecei a indicar nomes que, fossem no Brasil, já teriam sido substituídos pelos de políticos, tubarões e toda sorte de canastrões influentes.
Como as ruas em homenagem aos titulares de tantas profissões: rua dos Arameiros, dos Sapadores, dos Fanqueiros, dos Douradores, dos Correeiros, dos Ladares, dos Sapateiros, dos Actores, dos Bacalhoeiros. Ou as ruas da Esperança, das Farinhas, do Terreirinho e, mais famosas, a das Flores, a do Ouro e a da Prata. E a do Sol ao Rato? E a do Poço dos Negros? E a das Janelas Verdes?
Alguns nomes são música: a Travessa das Mónicas, o Alto da Cova da Moura, a Escadinha da Saúde, a Calçada da Picheleira. Ou a Travessa da Fábrica das Sedas, a Calçada das Necessidades, a Alameda dos Oceanos, a Rotunda das Oliveiras. E que tal um giro sem compromisso pelo Cemitério dos Prazeres?
Há também em Lisboa uma rua que não se qualifica como rua, praça ou travessa. Chama-se apenas Triste Feia – daí fazer parte da «toponímia das ruas que não o são». Fica no bairro de Alcântara, já foi cantada pelo poeta António Nobre e se refere a uma mulher que, nos idos de 1770, era assim chamada por motivos óbvios. A delicadeza de Lisboa deu à Triste Feia algo que suas belas e alegres contemporâneas não tiveram: uma rua pela eternidade.
Crónica do jornalista e escritor brasileiro Ruy Castro, publicada no jornal Folha de S. Paulo do dia 4 de junho de 2016.