«[Os médicos] descobriram que, por vários motivos, os nomes antigos eram imprecisos ou injustos, e tinham de ser trocados. E foram bem claros: os nomes iriam mudar, mas as funções continuariam as mesmas.»
Foi há alguns dias. Ao tratar-me remotamente com um otorrinolaringologista a respeito de uma dor de ouvido, fui informado de que, embora esse incómodo seja o mesmo de séculos, a sua denominação agora é diferente. Já não se diz dor de ouvido, mas de orelha. E não foi só isso que mudou. Segundo o doutor, esta e outras alterações na terminologia médica já vêm desde o começo do milénio, quando cientistas de 16 países se reuniram em São Paulo e anunciaram que, depois de muitos estudos, seis mil partes do corpo humano tinham sido rebatizadas com novos nomes oficiais. E o resultado é que, entre outras, nunca mais tivemos dor de ouvido. Só de orelha.
Eles descobriram que, por vários motivos, os nomes antigos eram imprecisos ou injustos, e tinham de ser trocados. E foram bem claros: os nomes iriam mudar, mas as funções continuariam as mesmas. A velha orelha, portanto, continuava disponível para grudar-se ao telefone, levar um beliscão ou portar um par de brincos – mas teria de ser chamada de orelha externa. E o ouvido, subitamente expulso dos dicionários médicos, passava a ser a orelha interna.
Outro nome que se evaporou nessa revolução da nomenclatura foi o cotovelo, rebatizado como cúbito. Donde a clássica "dor de cotovelo" que, no Brasil, designava o sofrimento de alguém que foi abandonado pelo seu amor, passou a ser agora a "dor de cúbito". O problema é que, em alguns casos, os cientistas tiveram de fazer um ajuste, e este foi um deles – porque já havia no braço um osso chamado cúbito. Pois deixou de chamar-se. O antigo cúbito passou a chamar-se ulna, a fim de libertar espaço para o novo cúbito, que aposentou o cotovelo.
E lembra-se do perónio, o osso que os jogadores de futebol costumavam fraturar junto com a tíbia? Passou a chamar-se fíbula. Donde, desde então, tivemos somente fraturas da fíbula e da tíbia. Quanto ao nosso valente e confiável aparelho digestivo – que sempre obrigamos a processar as mais violentas iguarias e ele nunca nos faltou –, tornou-se agora o sistema digestório. Não me surpreenderei se, revoltado com este nome, ele se recusar a digerir uma buchada de bode ou um sarapatel que você, a partir de agora, mandar para dentro.
Enfim, ao ler tudo isto, o leitor perguntará: «Mas que loucura foi esta? O que os nomes antigos tinham de errado?» E esta será uma boa pergunta. E, se procurar uma explicação, encontrará o nosso já velho e infalível conhecido: o politicamente correto.
Vejamos o caso do pomo de Adão. Descobriu-se que, como algumas mulheres também têm aquela horrenda proeminência no gogó, era injusto homenagear apenas o Adão para defini-lo, esquecendo-se a querida Eva. Ao mesmo tempo, imaginou-se que, diante de uma mulher que portasse um "pomo de Eva", as pessoas voltariam instantaneamente os olhos para a abominável proeminência em seu pescoço, o que poderia ser classificado de assédio sexual, assédio moral, bullying ou qualquer outra forma de desrespeito machista. Daí que, desde então, o poético pomo de Adão foi sumariamente cancelado, esqueceu-se também o "pomo de eva" e a abominável região passou a chamar-se, prosaicamente, proeminência laríngea.
Pelo mesmo motivo, os cientistas aproveitaram para cassar também os nomes de heróis que há séculos batizavam certas partes do corpo. Explicou-se que eles tinham de ser substituídos porque só se referiam a homens, o que diminuía a participação da mulher na nomenclatura. Com isso, o tendão de Aquiles passou a ser o tendão calcâneo. A trompa de Eustáquio tornou-se a tuba auditiva. E não ria, mas as trompas de Falópio passaram a ser as tubas uterinas.
Bem, não vamos discutir o desrespeito a Aquiles, grande guerreiro da mitologia e um dos símbolos universais da coragem. Eu não me incomodaria se ele fosse trocado por Diana, outra deusa formidável, ou por Salomé, Dalila, Jezebel e outras raparigas que só conheço biblicamente (no bom sentido) e admiro. Mas o que dizer do insulto a Eustáquio e a Falópio, os médicos italianos do século XVI que foram os primeiros a descrever as ditas trompas que ganharam os seus nomes? Veja bem que Eustáquio e Falópio não dispunham dos computadores, microcâmaras ou aparelhos de ultrassom que tornam hoje um doce de coco a tarefa de espiar dentro do corpo humano. Tudo que eles descobriram foi à custa de cirurgias terríveis, numa época sem recursos como a anestesia ou a simples luz elétrica. E o que fizeram os seus atuais sucessores, cercados de todas essas facilidades e certamente sem muito que fazer? Expeliram-nos da medicina.
Os médicos justificam-se dizendo que essa nova nomeação já veio tarde. Argumentam que os nomes antigos eram imprecisos e que aquelas partes, digamos, do ouvido e do útero, estavam, de facto, mais para tubas do que para trompas. Será? Pois, mesmo que se parecessem com trombones ou fagotes, os seus nomes originais deveriam ser preservados, porque a sua função no corpo humano não era a de produzir música. E que mulher ficará mais feliz de saber que, no lugar das suas antigas e lindas trompas de Falópio, passou a carregar em suas entranhas um par de tubas uterinas?
Eu acharia mais justo se, no embalo, os médicos também tivessem submetido ao bisturi o nome de algumas de suas próprias especialidades. Os otorrinolaringologistas, por exemplo, cuja designação sempre se prestou a pilhérias, poderiam ter trocado a sua designação por algo que não nos destroncasse a língua e nos criasse menos calos nos ouvidos – digo, orelhas.
Como isso não aconteceu, só posso por enquanto ser-lhes grato por terem conservado alguns nomes e expressões da medicina que, de tão lindamente cómicos ou sonoros, sempre me encantaram. Eis alguns.
Esqueleto, glote, piloro, úvula, cóccix, genuvalgo, zarolho, ovócitos, eritrócitos, hepatócitos, osteoblastos, orelhas de abano e movimentos peristálticos.
Crónica do autor publicada orginalmente no Diário de Notícias, de 12 de setembro de 2020.