«(...) A pessoa alvo de tal expressão não fica aliviada; se o intuito for consolar e solidarizar-se, falha redondamente. (...)»
A língua portuguesa é farta de expressões, ditos e ditados que encerram em si toda uma sabedoria de vida e do modo de a encarar. Senão, vejamos: «bater as botas», «agarrar com unhas e dentes», «fazer negócio da China», «procurar agulha em palheiro», entre muitas e muitas mais que não cabem neste propósito de escrita.
Umas mais óbvias de sentido que outras, dependendo sempre do contexto em que são pronunciadas. Para já, debruço-me sobre aquela que me leva a reflectir sobre o seu significado: «Podia ser pior». Esta deixa-me pasmada, por um lado porque é dita num contexto de um acontecimento acidental e mau para alguém. E, por outro lado, aparece para preencher um intervalo de tempo em que não há palavras, só sentimento.
Isto leva-nos a usar uma outra expressão que pode muito bem encaixar: «Encher chouriço», que significa precisamente enrolar e ocupar o tempo em espaço vazio. E o que significa uma e outra? Nada! «Podia ser pior» é pretensiosa ao mostrar-se optimista, e não acrescenta nada à situação.
Esta expressão aparece sempre em contexto de acidente ou de algo imprevisto na vida, ou mesmo em acontecimentos que não podemos controlar. É uma mistura de alívio, comiseração e gratidão, por determinada ocorrência não se revelar pior.
A tentativa de apaziguar e sossegar o espírito não resulta. Revela-se ambígua, na medida em que surge para preencher um intervalo de tempo em que o silêncio pesa.
A pessoa alvo de tal expressão não fica aliviada; se o intuito for consolar e solidarizar-se, falha redondamente. Se for pessoa sentirá ainda mais a dor de que padece ao ser subestimada, e se for objecto ou acontecimento, não haverá retorno.
Esta expressão aparece associada a uma certa religiosidade que acredita num deus que protege e não deixa que aconteça o pior. É também ela resultado de uma mente que acha que a tragédia é o que de mais certo pode acontecer. E, por isso, é uma constante da vida. Parte desse princípio para aceitar o que acontece de mau – o desconhecido é sempre algo a temer e a deixar nas mãos desse deus, para que a sua bondade se expresse.
Esta expressão aplica-se tanto a quem a pronuncia quanto àquele a quem é dirigida. Quando é parte de nós, há uma espécie de catarse que não é útil, nem colhe benefícios. Será mais uma estratégia do eu, na tentativa de adaptação psicológica às dificuldades, mas também isto tem o seu preço, porque no fundo é subestimar a sua própria dor. Quando é dirigida a alguém, revela-se inútil. Quer num ou noutro caso, estará sempre em causa a comparação da dor e o pretenso alívio.
Conclusão: não é lógico nem ético usar tal expressão. No entanto, continua a ser useiro e vezeiro nas relações entre as pessoas.
Texto da autoria de Maria Gaio, transcrito a seguir, com a devida vénia, do suplemento P3 do jornal Público, com a data de 16 de outubro de 2022. Escrito segundo a norma ortográfica de 1945.