«[...] A biblioteca familiar em que se formou tinha a omnipresença inesquecível de Eça de Queiroz.»
A aprovação por unanimidade pela Assembleia da República da resolução que visa conceder honras de Panteão Nacional a José Maria Eça de Queiroz constitui um ato de elementar reconhecimento em relação a quem é referência indiscutível das culturas de língua portuguesa.
Não esqueço o que me disse um dia em São Paulo o ensaísta António Cândido, num encontro memorável com o meu fraternal amigo Celso Lafer: a biblioteca familiar em que se formou tinha a omnipresença inesquecível de Eça de Queiroz. Era um tempo em que as personagens principais e os episódios marcantes dos romances do autor de Os Maias eram invocados palavra por palavra, pormenor por pormenor, pelos ávidos leitores dessa obra imortal. E lembro as charlas, cheias de entusiasmo e de graça, do meu amigo Luís Santos Ferro, no Grémio Literário, a invocar, perante Marcos Vinícios Vilaça, o impagável Taveira e o inevitável Vilaça – sempre lembrando o famoso jantar do Central, em que o défice e a dívida pública foram protagonistas, mesmo que apagados pela aparição divinal de Maria Eduarda, que iria virar do avesso o romance.
No debate parlamentar, o deputado José Luís Carneiro lembrou que este preito de homenagem constitui também um agradecimento à família de Eça, que legou o seu património material e imaterial à fundação com o seu nome, sediada em Santa Cruz do Douro, em Baião, hoje presidida pelo bisneto do escritor, Afonso Cabral. E recordou o papel de Manuel de Castro, neto de José Maria, que presidiu à Câmara de Baião, e D. Maria da Graça Salema de Castro, promotora de um extraordinário projeto de desenvolvimento, que constitui a afirmação do património cultural como irradiação de iniciativas em que através da memória se promove a emancipação dos povos e a justiça social.
E assim se concretiza a fidelidade ao pensamento de Eça de Queiroz e da sua geração – para quem o país não poderia ser condenado ao atraso e à mediocridade. Com efeito, «honras de Panteão Nacional» significam reconhecimento de um excecional contributo cultural e cívico.
E não se diga que Santa Cruz do Douro e Tormes ficam menos lembradas. Pelo contrário, projeta-se mais claramente para Portugal e para o mundo a dimensão perene do romancista. Continuaremos, por isso, a ir em peregrinação ao lugar emblemático onde tem sede a Fundação Eça de Queiroz – e como aconteceu com a exposição queiroziana da Fundação Gulbenkian, em que a memória do romancista ganhou interesse redobrado, fica a obra como símbolo da nossa identidade, numa fecunda ligação entre o sentido crítico e a vontade de construir um país melhor, cultivando o humor e recusando a acomodação.
E quando nos abeirarmos amanhã da ara que homenageará Eça no Panteão Nacional, lembrar-nos-emos do que disse a Eduardo Prado e que foi recordado na sessão parlamentar: «Esta nossa terra é sem dúvida a obra-prima do grande paisagista que está nos céus. Que beleza! (...) Tudo canta. Cantam, trabalhando cavadores e ceifeiras...» E recordaremos o ceticismo de Carlos da Maia e a língua viperina de João da Ega ou os sonhos esperançosos de Gonçalo Mendes Ramires até ao desengano de Jacinto e Zé Fernandes sobre o progresso abstrato e ilusório, ao sentido de justiça contra a escravidão em Cuba ou à preocupação com a remuneração dos trabalhadores de Tormes – por parte de um cultor exemplar da língua, de um humanista para quem a ironia era uma marca de exigência social e cultural.
Artigo publicado no Diário de Notícias no dia 19 de janeiro de 2021.