Quando eu era miúdo, volta e meia interrogava-me por que razão o antónimo de fácil era difícil e não “desfácil”, por exemplo… Não entendia a mudança do a de fácil para i em difícil…
Só quando comecei a estudar latim no liceu, me apareceu a resposta para esta minha dúvida de miúdo que tinha a mania de escarafunchar o porquê de certas ortografias. Foi nessa altura que a etimologia começou a dar-me volta à cabeça – e cada descoberta era, frequentemente, um delírio…
Fui encontrar um apontamento meu dessa época, com alguns exemplos deste fenómeno chamado apofonia ou alternância vocálica, que consiste, geralmente, na mudança da primeira vogal de uma palavra, se acrescentarmos um prefixo a essa palavra.
Este fenómeno fonético ocorre, frequentemente, em vocábulos latinos. Vários exemplos:
1. dis + facilis = difficilis (fácil – difícil)
2. per + annus = perennis (ano – perene)
3. in + castus = incestus (casto – incesto)
4. in + amicus = inimicus (amigo – inimigo)
5. in + aptus = ineptus (apto – inepto) [inepto = tolo, imbecil]
6. in + arma = inermis (arma – inerme) [inerme = indefeso]
7. in + barba = imberbis (barba – imberbe)
8. in + arte- = inerte- (arte – inerte)
OBS:
1. A palavra latina “arte-” (ars, artis) tem vários significados: arte, talento, ofício, profissão, obra, trabalho… Com a junção do prefixo in-, deu inerte- (iners, inertis) que, etimologicamente, significa «sem aptidão para nada, sem atividade, sem qualquer profissão» e, por extensão de significado, «parado, sem reação, inativo».
2. Na formação do vocábulo inapto (in + apto), não se deu a apofonia da vogal a aquando da junção do prefixo in-. Já em inepto, verificou-se a apofonia da vogal a.
Ser inapto é apenas não estar apto para fazer algo, ser incapaz. Por exemplo, costuma dizer-se «inapto para todo o serviço militar por questões de saúde».
Inepto tem um significado mais “agressivo”: além de significar «sem aptidão para algo, inábil, incapaz», tem associado a estes significados a ideia de «tolo, imbecil, idiota, disparatado». Tratar alguém de “inepto” é ofensivo, raia o insulto.
Os substantivos da família destes dois adjetivos são, respetivamente, inaptidão e inépcia.
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Um dia, mais tarde, ao estudar o fenómeno da apofonia dentro do latim, surgiu-me outro exemplo que nunca mais esqueci:
O vocábulo latino imbecillus é composto pelo prefixo de negação in- e, segundo alguns etimologistas, pelo vocábulo bacillum, diminutivo de baculum, «báculo1, bastão, cajado».
Por apofonia, in + bacillum deu imbecillus, que, primitivamente, tinha o significado de «fraco, deficiente físico, que necessitava de um apoio para se aguentar em pé». Só mais tarde é que ganhou o sentido de «fraco de espírito, tolo, idiota». Portanto, etimologicamente, imbecil significa «sem bastão».
O vocábulo baculum originou em português báculo; o seu diminutivo latino bacillum deu em português bacilo (bactéria em forma de bastãozinho ou bastonete).
Também a palavra bactéria apresenta o mesmo significado: foi construída a partir do grego βακτηρία [baktería], «bastão para a marcha», por causa da forma de bastão das primeiras bactérias observadas2.
1 Um báculo, em sentido lato, é um tipo de cajado usado pelos pastores para se apoiarem ao andar e para conduzirem o gado. Muitas vezes tem a extremidade curva para segurar a rês pela perna.
No sentido restrito, refere-se a um bordão usado pelos dignitários da Igreja Católica, simbolizando o seu papel de pastores do “rebanho divino”. Com a mitra, constitui uma das principais insígnias dos bispos.
2 Ver a etimologia do espanhol báculo em www.deChile.net e a de bactérie no Wiktionary em francês.